Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Registros de uma historiografia preguiçosa

Acreditamos que somente os indivíduos dotados de sangue-frio, ou dizendo de outra maneira, os indivíduos batráquios, anuros, que adaptam a temperatura do seu sangue ao meio ambiente, poderiam ler com indiferença as linhas que se seguem: ‘O sangue de Espanha – Há 70 anos uma rebelião militar deu início à guerra civil, mas foi uma luta onde os bons não apareceram’. Se o objetivo de um texto é despertar a curiosidade, levantar-se da vala comum onde jazem os que se publicam todos os dias, mas ressurgir, levantar-se pelo zurro mais alto, o objetivo foi conseguido.

Estava lá, como um cadáver em folha ressurreto, na Folha de S. Paulo de 19 de julho de 2006, o artigo ‘O sangue de Espanha. Que bons não apareceram?’, nós nos perguntamos. Teria sido um homem, alguém como um poeta ao nível de Federico Garcia Lorca, sepultado para o olvido eterno? Seriam aqueles heróis em carne e osso de Guernica, dos quais a história não registrou os nomes? Que bons, enfim, não teriam aparecido até o presente dia? E por isto, encantados pelo ornejo introdutório daquele artigo, pois até nas vozes menos harmônicas resiste alguma beleza, continuamos.

Os bons e os maus

Acreditem. O zurro, por seu poder de síntese, é mais belo. Porque mais adiante, ao procurar os bons que não apareceram até então, somos levados a ler as exibidas, de exibicionismo, linhas a seguir.

‘De acordo com a versão infantil da guerra, popularizada durante décadas por uma historiografia preguiçosa e ideologicamente comprometida, tudo foi simples: em 1936, a Frente Popular, uma simpática agremiação de democratas sem malícia (ou milícia), ganhou as eleições. A `direita´, uma mistura antipática de conservadores, monárquicos e fascistas, não tolerou e reagiu. Foi o princípio do fim.

De um lado, os bons: os republicanos, apoiados pela `democracia´ de Moscou e pelos intelectuais que acorreram ao conflito. Do outro, os maus: os nacionalistas, que a Itália e a Alemanha armavam. A Espanha de 1936 era uma luta de morte entre a democracia e o fascismo. O fascismo venceu. Até 1975.’

Mirem. Quando de um lado se unem fascistas, monarquistas e conservadores, como deveria ser chamada essa gangue? De bando exemplar para as gerações futuras? De valores inolvidáveis da humanidade? Do outro lado se encontram alguns dos maiores intelectuais do século 20, e mais democratas, socialistas, comunistas e patriotas, por vezes integrados em uma só pessoa. Como é mesmo que deveria ser chamado esse outro bando? De indivíduos desonestos, mercenários, dignos de tiros no crânio? Sim, como deveriam ser chamados? Mas aqui, como os testemunhos e obras de uns e outros são mui eloqüentes, afirma-se que há maniqueísmo, porque nem todos os bons são assim tão bons, nem todos os maus são assim tão perversos. E a história ensina etc. etc.etc.

Mirem. Aqui se levanta um passo comum a todo servidor de regimes de direita (pero hay esto?), um recurso comum a todo indivíduo conservador, ou em fase de má consciência, quando tempos de democracia surgem. É como uma justificativa moral dos crimes que viram, participaram, ou para os quais mantiveram um cômodo silêncio. Trata-se de relativizar a história. Como nem todas vítimas, como nem todo resistente é um sujeito blindado por ética 100%, como todo e qualquer homem erra e muito erra, passa-se a vê-lo a partir de pequenas vilezas, para que se mostrem como ídolos de pés de barro. E quanto aos beneficiários da ordem infame, bueno, são homens contraditórios, conservadores pero, reacionários pero…, de direita – se é que isto existe ainda, pois caiu o Muro de Berlim!!! –pero homens íntegros, conservadores à moda antiga, uma redundância que apenas exalta a honestidade integral de homens que não gostaríamos de ter como amigos.

Reacionários, sim, mas de bom coração. Daí que não pode ser aplicado o maniqueísmo de julgar que a virtude, e somente a virtude, nada mais que a virtude, esteja em quem entregou a sua vida a uma resistência heróica em tempos de guerra. É o recurso da meia verdade, ou do mentir em mistura a verdades. O recurso de advogado de assassinos. Mas se há registros, documentos do que tais santos de pau oco fizeram, ah, essa historiografia preguiçosa, ideológica, que tédio…

Os bons historiadores

E continua, a supor que saiu do primeiro ponto, o artigo publicado na Folha:

‘Ninguém acredita mais nesta simplória versão dos fatos, corrigida nos últimos anos por Antony Beevor ou Stanley Payne, para citar apenas dois nomes centrais de uma historiografia moderna que se beneficiou, e muito, da abertura dos arquivos soviéticos. E, se todos conhecemos as atrocidades de Franco, capaz de mandar fuzilar opositores do regime entre duas garfadas de paella, o que teria sucedido à Espanha se a República tivesse vencido?

Não seria, com certeza, uma democracia parlamentar, respeitadora das liberdades civis e religiosas, como os próprios republicanos se encarregaram de mostrar desde, pelo menos, 1934: ou a Espanha seguia o curso soviético, garantia Largo Caballero, líder dos socialistas, ou a guerra seria o único caminho. A guerra foi o único caminho: depois de 1936, com uma vitória tangencial por 150 mil votos, a Frente Popular entendia que um tão magro mandato autorizava tudo. Centenas de igrejas queimadas. Centenas de assassinatos políticos. E um pretexto para a guerra’.

Pero há outros historiadores, embora não tão bons quanto o lado bom do autor bom do bom artigo. Bueno, pero antes.

Vale observar que aqui, mais uma vez, cai o mito da imparcialidade da imprensa, que chefes de reportagem mais apressados traduzem por um ‘ouvir o outro lado’. Ainda que o texto comentado não seja bem uma reportagem, ele toca em questões tão sérias e importantes que não poderiam ser deixadas com apenas uma versão, ou pior, aversão, pela história e ideais democráticos.

Um bom editor, digo, um editor cheio de defeitos, metade bom, metade ruim, deveria publicar versões menos embusteiras, ou pelo menos ouvir alguém do ‘outro lado’, do lado dos ruins, dos idiotas que respeitam a brava luta que antecedeu a Segunda Guerra Mundial. Quando nada, para lembrar uma página escrita pelos homens que nos acostumamos chamar humanidade. Se Hemingway, George Orwell, John dos Passos, André Malraux, Lorca, Saint-Exupéry, Robert Capa, Antonio Machado, José Bergamín, Miguel Hernández, Rafael Alberti, nada dizem à pressa, informação e idéias do senhor editor, pelo menos ouvisse o que historiadores, intelectuais espanhóis dizem hoje dessa guerra civil. A memória não pode ser insultada impune.

O outro lado

Jesús Gómez, editor de La Insígnia, nos respondeu a algumas perguntas por e-mail, que julgamos de utilidade pública transcrever. No que se refere à Espanha republicana seguir o modelo soviético:

‘La República española ni siquiera tuvo relaciones diplomáticas con la URSS hasta el mismo 1936, y sólo porque la URSS fue el único país que quiso venderle armas. El Partido Comunista era por entonces marginal, sin fuerza ni extensión para poder influir en la política española; su relativa fuerza la ganó más tarde, durante la guerra. La mayoría política estaba en manos de los republicanos (liberales progresistas como Azaña) y del PSOE. España no estaba al borde de una `revolución bolchevique´ en 1936 ni desde luego en 1939.

Ahí va una frase perfectamente citable de Daniel Kowalsky, premio Gutenberg de la American Historical Association (EEUU) y uno de los pocos historiadores que se ha molestado en estudiar los archivos que se hicieron públicos en Rusia tras la caída de la URSS. No dice nada que no sea perfectamente obvio, pero es algo que hay que dejar bien claro: `España no reconocería la legalidad del régimen bolquevique hasta mediados de 1933, y el intercambio de embajadores no se produjo hasta después de que estallara la guerra civil.´ (La Unión Soviética y la guerra civil española)

Por otra parte, la relación de la República en guerra con la URSS fue siempre de cierta desconfianza, una relación obligada por ser, como te comentaba, el único país dispuesto a vendernos armas – que cobró a buen precio. Además, la URSS hizo algo que poca gente sabe: a partir de 1937, sus envíos de armas empezaron a ser cada vez más pequeños. Fundamentalente, porque destinó parte de su capacidad a la resistencia china contra Japón y ya no dió tanta prioridad al `frente occidental´ contra el Eje. Además, la República estaba en la ruina y nadie le daba crédito, por no mencionar lãs tremedas dificultades que encontraban los envíos: o tenían que cruzar toda Europa y normalmente eran detenidos en la frontera francesa (y devueltos a la URSS) o debían viajar por mar: cientos de mercantes fueron hundidos por las marinas alemana e italiana en el Atlántico y en el Mediterráneo.

Las relaciones entre España y la URSS se enfriaron tanto que a finales del 38, y ante la desesperada situación del Ejército de la República, que ya casi no tenía suministros, el Gobierno de Negrín envió a Ignacio Hidalgo de Cisneros (aristócrata, pero comunista) a hablar personalmente con Stalin para que concediera las armas que se necesitaban. No había dinero para pagarlas, pero Stalin las concedió in extremis. Por cierto: las armas no llegaron nunca. En el preciso momento en que los fascistas desencadenaban la ofensiva contra Cataluña, Francia se negó a dejar pasar el envío. Esos tanques y aviones habrían suficientes para que la República aguantara varios meses más, suficientes para que empezara la II Guerra Mundial. Ese era el verdadero objetivo estratégico de las operaciones militares republicanas. No tenían recursos para otra cosa. Se trataba de ganar tiempo hasta la IIGM, y posteriormente, aliarse con Francia, Inglaterra y EEUU (no la URSS) en su lucha contra el Eje.’

Nada mais

Quanto ao terror, crimes e assassinatos promovidos pelos republicanos:

‘Asesinatos y quemas de iglesias: Se produjeron muchos asesinatos antes del 18 de julio de 1936, incluido el del líder de la derecha, Calvo Sotelo, pero la inmensa mayoría fueron asesinatos de trabajadores, militantes y militares de la izquierda. El golpe de Estado se había proyectado en febrero, cuando el Frente Popular ganó las elecciones, y sólo se pospuso hasta julio por razones logísticas. No necesitaban ningún pretexto para la guerra. Necesitaban coordinar la operación con Berlín y Roma, porque sin ellos no tenían ninguna posibilidad. Ni siquiera habrían conseguido pasar el Ejército de África a la Península ibérica (casi toda la Marina era republicana)’.

E a esse final do artigo da Folha

‘Uma vitória da `esquerda´ em 1939 teria transformado a Espanha do século 20 na Romênia do século 20: um longo regime comunista que, provavelmente, só a queda do Muro, em 1989, teria libertado de vez. Uma luta entre bons e maus? Não. Uma luta onde os bons simplesmente não apareceram’

…assim respondeu e comentou Jesús Gómez:

‘Lo importante del asunto es que João Pereira Coutinho justifica a Hitler, a Mussolini, a Franco. Es un revisionista histórico, que pretende poner en el mismo plano al fascismo y a los regímenes democráticos. Es decir, Pereira ataca al Estado de derecho, que es precisamente hijo del triunfo de los aliados sobre el Eje y del pacto internacional que suponen los juicios de Núremberg.’

No que também terminamos, porque nada mais próprio poderia ser escrito.

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Jornalista e escritor