Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Revisionismo da imprensa

Cresce entre alguns representantes da imprensa a tendência de promover uma revisão de nossa história, no sentido de eximir a própria imprensa da responsabilidade como ator relevante nos processos políticos que levaram o país no passado ao rompimento com a legalidade democrática. Esta manifestação de falsidade de consciência pôde ser observada nos debates sobre os 40 anos do golpe militar de 1964, mas ocorreu com maior intensidade nos debates sobre a Era Vargas, em particular sobre o seu segundo governo (1951-1954), que se desenrolou num contexto democrático e foi interrompido por um golpe de Estado e pelo suicídio do presidente. As reportagens e artigos publicados recentemente não colocaram em discussão a trajetória da imprensa, criando a impressão de que ela não esteve envolvida nos intensos conflitos da época, representados pela disputa entre os projeto desenvolvimentista nacionalista, que enfatizava a atuação do Estado, e o liberal, adepto do livre mercado.

Verdade seja dita, na revisão da história alguns jornais fizeram referências à Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, colocando-a na posição de representante da oposição radical. De fato, logo após a vitória eleitoral de Vargas, em outubro de 1950, a Tribuna da Imprensa expressou os sentimentos dos setores mais intolerantes da UDN, que tentaram impedir a posse do presidente, e no decorrer do governo o jornal não economizou munição para desestabilizá-lo. Predominava no ambiente político conservador a avaliação de que o retorno de Vargas pela via eleitoral representava uma ameaça à democracia. Nesse sentido, a Tribuna da Imprensa nunca esteve só, mas muito bem acompanhada, elo de uma cadeia de forças da oposição liderada pela UDN e legitimada por diversos representantes da imprensa carioca e paulista.

A Tribuna da Imprensa era a mais violenta nos ataques a Vargas. Lacerda, seu proprietário, se via na posição de líder de uma cruzada pela regeneração dos costumes da República e se articulava com grupos de militares golpistas. Seu jornal classificava Vargas de usurpador dos poderes da República, totalitário, demagogo, além de definir como cesarista a prática política do presidente. Mas havia no campo liberal um padrão discursivo quando se tratava de colocar em foco o presidente Vargas. Os jornais destacavam sua natureza autoritária, sua resistência às mudanças de valores, além das dúvidas quanto a sua sinceridade no acatamento às regras políticas estabelecidas constitucionalmente. Divulgavam também a idéia de que Vargas tinha uma natureza fluida e não pertencia a nenhuma família política, podendo, de acordo com as circunstâncias, ser democrata liberal como autoritário. Uma vez que o presidente era definido como um homem imprevisível, tomado pelas paixões, sugeriam que era o governante não modificado de 1937, cujo enquadramento institucional era momentâneo até ele adquirir força para sobrepujá-lo.

Marketing e reedição

A desqualificação de Vargas como autoridade legítima foi acompanhada por uma onda de denúncias sobre corrupção no Estado, como as que envolveram o jornal Última Hora, alvo de uma CPI que apurou se o então presidente Vargas teria intercedido na liberação de um empréstimo do Banco do Brasil para criar o jornal, de propriedade de Samuel Wainer. Na campanha contra o jornal Última Hora, que apoiava Vargas, Lacerda não encontrou à disposição canais de rádio e TV? Lacerda não esbravejava que o caso Última Hora era a matriz de outros escândalos, não acusava Wainer de ser comunista e agente de Moscou, não pediu o fechamento do jornal e a expulsão do país de seu proprietário, que era tratado como judeu de origem romena?

A estratégia discursiva atualmente empregada por alguns representantes da imprensa que dá visibilidade apenas à atuação da Tribuna da Imprensa no governo Vargas tem o objetivo de encobrir da sociedade não apenas as conexões ideológicas daquele jogo político, mas também um tipo de prática assumida por outros jornais da época, descomprometida com a vontade da opinião pública popular e com construção democrática, e, portanto, responsável em parte pelo descrédito das instituições políticas nos anos de 50 e 60.

Se a imprensa aproveitou os episódios históricos para debater os governos dos presidentes Vargas e Goulart, por que não fez também um balanço de sua própria atuação nesses períodos da República, considerando o compromisso com a liberdade de imprensa e com a democracia? Desse ponto de vista, devemos reconhecer o mérito da TV Globo que, ao completar 35 anos do Jornal Nacional, recuperou suas edições passadas.

É verdade que o tom foi de quem estava comemorando o sucesso de audiência, em meio a uma das maiores crises econômicas e éticas do jornalismo brasileiro. Ao marketing de valorização da empresa correspondeu a reedição dos programas jornalísticos passados com um sentido político distante de sua verdadeira história. A emissora procurou construir a imagem de oposição ao ambiente político criado pela ditadura militar, tentando apagar da memória coletiva os compromissos ideológicos com o autoritarismo de 1964 e com o regime que ajudou a legitimar.

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Doutor em História Social pela USP