Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Tancredo já governou o Brasil

Uma faceta de Tancredo Neves é geralmente esquecida pela nossa mídia. Na lembrança dos 20 anos de sua morte (juntamente com os 45 anos de Brasília), que naquele 21 de abril de 1985 ofuscou até uma vitória de Ayrton Senna numa corrida de Fórmula 1 (ironicamente, Senna teria, cerca de nove anos depois, um funeral bem mais celebrado e além das fronteiras nacionais), Tancredo Neves apenas é lembrado pelos feitos políticos de 1984 e 1985.

Apesar de sua figura carismática e de seu grande prestígio histórico, uma importante etapa da biografia de Tancredo não é sequer estudada por nossos jornalistas e cronistas políticos.

Além de ter sido ministro da Justiça do segundo governo de Getúlio Vargas, e de ter sido uma de suas testemunhas no episódio trágico que encerrou a vida do grande estadista gaúcho, o mineiro Tancredo Neves foi o primeiro chefe do Conselho de Ministros durante a breve experiência parlamentarista do governo João Goulart.

Goulart, outra figura ligada a Getúlio Vargas, bem mais diretamente do que Tancredo – que era político mineiro, do PSD então comandado por Benedito Valadares, e que revelou sua grande estrela na figura do médico Juscelino Kubitschek de Oliveira, enquanto Jango era trabalhista do mesmo partido de Vargas, o PTB –, era um político carismático que no entanto era visto pelas elites conservadoras como um homem pouco confiável, trabalhista como seu mestre Getúlio e ligado afetivamente ao trabalhista radicalmente de esquerda, o engenheiro Leonel Brizola, que era casado com a irmã de Jango, Neusa.

João Goulart foi eleito vice-presidente, numa época em que, como previa a Constituição de 1946, os vice-presidentes tinham eleições específicas. Jango foi eleito vice pela primeira vez como companheiro de chapa de Kubitschek, em 1955, episódio que enfureceu as elites conservadoras, que tentaram um discreto golpe político para impedir a posse de JK.

Para entender esse golpe é preciso lembrar que, morto Vargas, em 1954, assumiu o vice dele, Café Filho. Em novembro de 1955, Café filho adoeceu e a presidência da República foi assumida pelo presidente da Câmara dos Deputados, Carlos Luz. Um incidente do general Bizarria Mamede, que atacou a vitória eleitoral de JK chamando-a de ‘mentira democrática’ no enterro do general Canrobert da Costa, foi criticado pelo marechal Henrique Teixeira Lott, que era ministro da Guerra e ameaçou demitir-se do cargo se Bizarria não fosse punido pelo discurso violento.

Antes que Teixeira Lott deixasse o cargo, ele deu um golpe para destituir Carlos Luz e entregar o governo da nação ao presidente do Senado, Nereu Ramos. Foi este que entregou a faixa presidencial a Juscelino, no dia 31 de janeiro de 1956.

O ano mais louco da história

Passou-se o período de ’50 anos em cinco’ de JK, que culminou com a inauguração de Brasília – façanha duramente criticada pela grande imprensa da época, que via no grandioso ato um ‘inútil desperdício das contas públicas’, suposto causador da inflação. Alguns historiadores exageram o brilho da época, atribuindo ao período de 1956 a 1961 um ambiente de prosperidade e progresso (o país buscava o progresso, mas não havia encontrado: anos depois, nem sequer se buscava o progresso, com tantos anos de degradação social pela ditadura), foi marcada pela primeira vitória da seleção brasileira numa Copa do Mundo de futebol, pela ascensão do Cinema Novo e pelo sucesso internacional da Bossa Nova. O início dos anos 60 também foram de surgimento do rock brasileiro, da evolução da televisão, do surgimento do rádio transistor e do videoteipe.

Apesar das realizações de JK, ele não conseguiu eleger o sucessor, o mesmo marechal Lott do golpe preventivo, derrotado pelo candidato sem partido de uma chapa apoiada por partidos conservadores, como a UDN (o PFL da época). Da chapa apoiada por JK, só o vice, João Goulart, foi eleito, derrotando o vice de Jânio, Milton Campos.

Com um governo que oscilava entre medidas político-econômicas conservadoras e uma política externa ‘independente’, que culminou com a estranha condecoração com a medalha da Ordem do Cruzeiro do Sul ao guerrilheiro Ernesto Che Guevara, que então era ministro da Economia do governo cubano de Fidel Castro, Jânio Quadros governou apenas sete meses naquele ano de 1961, que a revista Manchete classificou, em dezembro daquele ano, como ‘o ano mais louco de nossa história’. Renunciando após assistir, em Brasília, ao desfile do Dia do Soldado, Quadros apresentou sua carta de renúncia, num feito até hoje mal-explicado, embora o provável motivo teria sido uma tentativa de golpe que imaginaria ser favorecida pela comoção popular, que reivindicaria a volta dele ao poder.

Pressões contraditórias

A entrega do poder presidencial a João Goulart – que estava viajando, por arranjo estratégico de Jânio Quadros, à China e à URSS, o que retardaria a volta do político gaúcho a tempo de assumir o poder – era uma realidade que assustou a direita nacional. A pressão dos militares, ao lado de uma pressão do lado oposto, a Campanha da Legalidade articulada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, fez com que a posse de Jango fosse assegurada, mas sob a condição de que o Brasil passaria ao regime parlamentarista, no qual seria designado o presidente do Conselho de Ministros (primeiro-ministro) para governar o país, enquanto o presidente da República se limitaria a ser um chefe de Estado, sem poderes para governar e decidir pelo país.

O primeiro dos três primeiros-ministros que passaram pela experiência parlamentarista – para a qual estava previsto um plebiscito popular para decidir a manutenção ou não do regime – foi Tancredo Neves, do PSD, uma tendência moderada escolhida como contraponto ao trabalhismo de Jango, que muitos viam como supostamente comunista. O gabinete de Tancredo foi denominado imediatamente de ‘gabinete de união nacional’, uma tentativa de conciliação política entre setores conservadores e progressistas. Para o Ministério da Fazenda, por exemplo, foi escolhido o banqueiro Walther Moreira Salles (dono do célebre Banco Nacional de Minas Gerais e pai do cineasta Waltinho Salles, que do pai herdou o nome, mas não os negócios), que implantou uma política econômica conservadora.

O primeiro gabinete parlamentarista já sofria as pressões contraditórias que marcaram todo o governo de João Goulart, tanto na fase parlamentarista quanto presidencialista. Na gestão Tancredo, foi adotada uma política econômica que seguiu a cartilha do Fundo Monetário Internacional e, entre outras medidas, havia o corte dos subsídios ao trigo e ao petróleo. Mas, contraditoriamente, outras medidas foram tomadas, como o cancelamento da autorização do truste Hanna Corporation, dos EUA, para exploração de jazidas em Minas Gerais. O governo também restabeleceu as relações diplomáticas com a URSS. Além disso, a reforma agrária se tornou uma das mais fortes reivindicações da sociedade brasileira de então. Era uma época de intensas mobilizações sociais, e estavam em ascensão as Ligas Camponesas (o MST da época), cuja figura central era o deputado Francisco Julião (hoje falecido e esquecido, mas que chegou a estar presente nas campanhas pelas eleições diretas em 1984).

Experiência pouco lembrada

Apesar do perfil conciliador de Tancredo Neves, que buscava o apoio das mais diversas e antagônicas tendências políticas, as pressões da direita, que julgavam o governo conivente com as agitações populares e ineficaz nas ‘tradicionais’ políticas de combate à inflação (na prática, o ‘combate à inflação’ era o respeito ao projeto conservador do FMI, que a direita queria), todo o gabinete foi dissolvido, quando Tancredo deixou o cargo para disputar o governo de Minas Gerais, em julho de 1962. João Goulart queria que o sucessor de Tancredo fosse San Tiago Dantas, petebista, mas o Congresso Nacional queria o senador pessedista Auro de Moura Andrade. No impasse, quem acabou assumindo o comando do governo parlamentarista foi um político de nome cômico: Brochado da Rocha. Depois dele, o escritor Hermes Lima exerceu o cargo, até que o plebiscito do parlamentarismo, previsto para 1965, foi antecipado para janeiro de 1963. A consulta popular resultou em 74% dos votos favoráveis à volta do presidencialismo.

Veio o presidencialismo, a intensificação das manifestações sociais, e diante dessa situação complicada houve um golpe militar que foi muito mais fácil (para a direita) do que se imaginava, uma vez que João Goulart não esboçou reação alguma, irritando Leonel Brizola, que tentava liderar uma resistência popular que se demonstrou frágil e natimorta. Veio uma ditadura de 20 anos que devastou o país, até hoje vivendo uma crise sociocultural que os tempos democráticos atuais estão tentando recuperar.

Tancredo Neves, eleito presidente da República pelo voto indireto, última herança da ditadura militar, comandaria o retorno à democracia num regime presidencial. Adoecido e morto durante o período em que legalmente assumiria o mandato (integralmente assumido pelo então vice José Sarney), Tancredo teve que se contentar com a hoje como governante do país no breve período em que o Brasil experimentou um regime parlamentarista.

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Jornalista