Publicado originalmente no blog Balaio do Kotscho.
Segunda-feira, 10 de dezembro de 2018.
No meu calendário da vida, hoje não é um dia qualquer.
Por isso, peço licença aos leitores para escrever um texto de memórias pessoais que se confundem com o que aconteceu no país nos últimos 70 anos.
Tudo faz muito tempo.
Ao terminar de ler o jornal, com as várias efemérides da semana, embaralham-se na minha cabeça boas e más lembranças, e a noção do tempo passado.
Para quem nasceu em 1948, mesmo ano da Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando o mundo ainda sofria as sequelas da Segunda Guerra Mundial, este documento foi como um divisor de águas entre a barbárie e a civilização, no século passado.
Lembra matéria da Folha: “Com 30 artigos, a declaração é considerada o documento mais traduzido do mundo – para mais de 500 idiomas – e inspirou as constituições de vários Estados e democracias recentes”.
Inspirou também a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, criada e comandada por D. Paulo Evaristo Arns, nos tempos da resistência à ditadura militar, da qual fui membro durante muitos anos, na época em que lutávamos pela redemocratização do país.
Um dos seus trabalhos mais importantes foi a edição do livro “Brasil Nunca Mais”, coordenado por D. Paulo, do qual também participei, a mais pungente denúncia das torturas praticadas nos porões do regime militar.
Em 2008, quando a DUDH completou 60 anos, fui um dos cinco jornalistas brasileiros contemplados com o Troféu Especial de Imprensa da ONU, entregue aos profissionais que mais se destacaram na defesa dos Direitos Humanos.
Me perdoem pelas auto-referências, mas estas são passagens da vida que não dá para esquecer, no momento em que esses direitos fundamentais estão novamente ameaçados em nosso país.
Mas há boas lembranças também nestas efemérides, não apenas tragédias recorrentes.
Foi num dia 10 de dezembro, há exatos 60 anos, que circulou a primeira edição da Ilustrada, inicialmente um caderno de variedades da Folha de S. Paulo, que tempos depois promoveria uma revolução no jornalismo cultural do país, especialmente a partir da década de 80.
Como repórter de geral (assim se chamavam os que não tinham uma editoria fixa), colaborei várias vezes com a Ilustrada e seu filhote, o Folhetim, criado por Tarso de Castro, onde publiquei uma extensa reportagem sobre a “República do ABC”, no auge das greves de metalúrgicos comandadas por Lula, que transformaram o sindicalismo brasileiro, dando origem ao PT e à CUT.
Eram bem variados os assuntos das matérias que me lembro de ter escrito na Ilustrada: dos 50 anos da dupla caipira Tonico e Tinoco aos shows de fim de ano do Roberto Carlos e resenhas sobre livros, filmes e peças de teatro, já na época dos estertores da ditadura e do advento da campanha das Diretas Já.
O Brasil voltava a respirar democracia, depois da longa noite do Ato Institucional Nº 5, que fechou o Congresso, instalou a censura prévia à imprensa, cassou centenas de mandatos e promoveu prisões em massa de líderes políticos, sindicais e religiosos.
Na próxima quinta-feira, dia 13 de dezembro, o golpe dentro do golpe completa 50 anos.
Mesmo que a gente não queira, nos últimos tempos os piores pesadelos daquela época voltaram a perturbar nosso sono.
Nunca fui preso nem torturado, mas muitos dos meus amigos e colegas de trabalho e faculdade foram.
Desapareciam, simplesmente, de um dia para outro, na faculdade de jornalismo que eu cursava na USP e na redação do Estadão, onde tinha entrado como “foca”, um ano antes.
“Meninos, a brincadeira acabou”, lembro-me bem da advertência de Clóvis Rossi, o jovem chefe de reportagem, quando nos despedimos naquela noite em que os censores entraram triunfantes na redação.
Até então, a gente ainda podia publicar denúncias contra as arbitrariedades da ditadura e cobrir com toda liberdade a fantástica explosão cultural em todas as áreas – nos festivais de música popular, no cinema e no teatro, tempos em que brilhavam ao mesmo tempo Gláuber Rocha, Gianfrancesco Guarnieri e Zé Celso Martinez Correia, Chico, Caetano e Gil, Elis, Gal e Maria Bethania.
Era a turma que ficou conhecida como a “Geração 68”, à qual eu pertenço, agora a caminho do ocaso.
Jamais surgiria outra geração como esta, que produziu também a revista Realidade e o Caderno B do Jornal do Brasil, criou os grupos Arena, Oficina e Opinião (no Rio), levou a Bossa Nova e o Cinema Novo para o mundo todo.
E agora, o que temos, o que virá pela frente?
Encerrou-se também o ciclo dos partidos e políticos que surgiram após a redemocratização, com a Nova República, sem que saibamos o que ocupará este vazio.
E este é o maior perigo que se avizinha, como alertou outro dia Almino Afonso, um raro sobrevivente político do pré-64: o vazio de lideranças políticas e partidárias abre espaço a aventureiros e salvadores da pátria de toda espécie, que não têm um projeto de país, mas apenas de poder.
Viver tanto tempo, acompanhando de perto estas mudanças na vida brasileira, tem a vantagem de sermos testemunhas de uma época e, ao mesmo tempo, de conhecer os riscos de um retrocesso.
Para não dizer que não falei de flores, lembrando um hino daqueles tempos, hoje também é o dia da formatura no ensino fundamental (o antigo ginásio) da minha neta mais velha, a Laurinha, de 15 anos, na mesma escola, o Colégio Santa Cruz, onde entrei 60 anos atrás.
O colégio continua o mesmo, mas os meus cabelos…
Tudo faz muito tempo.
Vida que segue.
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Ricardo Kotscho, 70, é repórter desde 1964 e já trabalhou em praticamente todos os principais veículos da imprensa brasileira em diferentes cargos e funções, de estagiário a diretor de redação.