Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Um bicentenário com pouco a comemorar

Este mês, o Estado britânico celebra, com razão, o bicentenário do fim da participação inglesa no tráfico de escravos. E, no entanto, cidadãos comuns, assim como professores e produtores de programas de televisão que poderão se achar contemplados pela medida do governo, fariam melhor se refletissem sobre alguns aspectos desse aniversário que não são tão comemorativos.

Em primeiro lugar, quando se evoca o voto do Parlamento em 1807, também se deve recordar que o tráfico de escravos foi, por mais de dois séculos, a peça-chave do comércio exterior britânico – endossado, apoiados e alegremente desfrutado pela família real, pelos fidalgos, magnatas, latifundiários e comerciantes.

A riqueza britânica – pública e privada – criada pelo trabalho escravo foi um elemento fundamental no processo de acumulação de capital que tornou possível a revolução industrial e os lucros conseqüentes constituíram um elemento sólido no interior de algumas famílias e da sociedade britânica em geral, repassados, em cascata, de geração para geração. Nesse contexto, a reivindicação por uma indenização é uma proposta séria, semelhante àquela apresentada pelas famílias de sobreviventes do Holocausto pela devolução de bens roubados pelos nazistas. Os negros cujos ancestrais foram escravos, vítimas desse outro Holocausto, reivindicam simplesmente que os frutos roubados da força de trabalho de seus avós sejam devolvidos a seus herdeiros.

Em segundo lugar, devemos lembrar-nos que o fim do tráfico não resultou apenas da agitação dos quakers, de outros dissidentes cristãos e de parlamentares radicais, mas também do trabalho dos próprios escravos, que se engajaram na divulgação do fato – pessoas que, no mundo de hoje, seriam descritas como ‘terroristas’. A propagação da agitação antitráfico de escravos foi o estopim para a rebelião de escravos que se alastrou pelas Américas e Caribe no final do século 18, alcançando seu pico durante os anos da Revolução Francesa.

Voto desrespeitado

É costume homenagearem-se os revolucionários escravos em São Domingos – hoje, Haiti – que se rebelaram em agosto de 1791. Tomaram o poder, aboliram a escravatura e fundaram a primeira República negra das Américas. No entanto, também em outras ilhas ocorreram importantes insurreições lideradas por escravos que, por ocasião das guerras franco-britânicas, contaram com a ajuda dos franceses para tomar boa parte do território de São Domingos, Guadalupe, Granada, a ilha de São Vicente, Jamaica, a ilha de Santa Lúcia e Trinidad. Mesmo quando suas ações acabaram fracassando, os rebeldes derrotaram duas frotas navais enviadas pela Grã-Bretanha para os destruir. E também impediram, durante anos, o rentável negócio das plantações de açúcar britânicas.

Em terceiro lugar, ao analisar a decisão britânica de 1807, também se deve levar em conta que outros países já o haviam feito. Uma vez mais, é costume lembrar a decisão da Convenção [da Revolução Francesa] de abolir a escravatura em 4 de fevereiro de 1794. Entretanto, nos Estados Unidos – e apesar do texto da Constituição adotada em 1787 que endossava o tráfico de escravos – vários estados abandonaram a prática da escravatura. Enquanto os estados sulistas enriqueciam à custa do trabalho escravo por mais 70 anos (até 1863), a escravatura foi abolida em Nova Jersey e Delaware na década de 1780 e o tráfico foi proibido em Massachusetts, Connecticut, Nova York e Rhode Island.

Os dinamarqueses também estiveram entre os primeiros, decretando o fim do tráfico em suas colônias caribenhas em março de 1792. Um mês depois, por ocasião de um debate na Câmara dos Comuns, os britânicos votariam de forma semelhante, declarando que ‘o tráfico de escravos deveria ser abolido de maneira gradual’. O evasivo termo ‘gradual’ foi introduzido por um influente político imperial da Escócia, Henry Dundas, o qual, por meio desse artifício, adiou o fim do tráfico por mais quinze anos.

Esse longo adiamento seria uma razão a mais para que o bicentenário deste ano fosse comemorado em voz baixa, pois a manutenção do tráfico permitiu que continuassem as pérfidas práticas da travessia do Oceano Atlântico, assim como permitiu que os ingleses comprassem escravos no mercado negro para lutar em suas guerras imperiais. De Goa e de Moçambique foram importados negros do mercado de escravos para lutarem na guerra pela tomada de Ceilão, enquanto 13 mil escravos eram comprados no Caribe para ajudar na repressão às rebeliões de escravos. Foram criados batalhões negros em várias ilhas após 1795 e era prometida a liberdade aos soldados quando terminassem as hostilidades. Como as promessas eram, muitas vezes, esquecidas, seguiam-se às rebeliões, de um lado, motins, do outro, que levava a açoitamentos e execuções.

Um quarto aspecto do fim do tráfico de escravos não deve ser esquecido: o voto aprovado em 1807 nem sempre foi respeitado. Na Ásia, os ingleses continuaram a usufruir daquela forma de comércio. O governador da ilha de Maurício, conquistada dos franceses em 1810, procurou agradar aos colonos franceses que ali viviam, permitindo-lhes que continuassem importando escravos – cerca de 30 mil, entre 1811 e 1821.

Erro recorrente

O voto de 1807 não pôs fim ao tráfico internacional por outras nações, nem acabou com a escravatura. Vários países mantiveram o tráfico – meio milhão de escravos chegaram às Américas durante a década de 1820, mais de 60 mil por ano. Na década de 1850, ainda eram desembarcados no Brasil 3 mil escravos por ano. A própria escravatura só foi abolida no império britânico em 1838, no império francês em 1848, e nos Estados Unidos em 1863. Cuba, então colônia espanhola, continuou com a escravatura até 1886 e o Brasil, até 1888.

Uma herança perene e duvidosa de 1807 foi o intervencionismo pretensamente bem-intencionado que sobreviveu na Grã-Bretanha por dois séculos e ainda incentiva os governos contemporâneos. A marinha britânica recebeu a tarefa de patrulhar o Atlântico para coibir o tráfico de escravos internacional da África para o Brasil, Cuba e Estados Unidos. Uma esquadra, na África Ocidental, vigiava a costa africana e dava às bases navais um apoio que tornaria mais fácil, posteriormente, a expansão do império britânico, que iria ocorrer no final do século. Essa esquadra naval só foi extinta no final da década de 1880, mas então o gosto britânico pelo império já fora definitivamente estabelecido.

As atividades da marinha deram aos ingleses um certo apego por ações internacionais, que sobreviveram por muito tempo até a era pós-colonial. O discurso de Anthony Blair em Plymouth, em janeiro deste ano – sobre a Grã-Bretanha como uma nação ‘guerreira’ cujas fronteiras vão até a Indonésia – foi emblemático do novo entusiasmo pelo reflorescimento imperial e fez-se acompanhar pelo comentário de Gordon Brown de que ‘não devemos quaisquer desculpas’ pelo império.

O último e trágico aspecto da decisão de 1807 de pôr fim ao tráfico foi o de criar a falsa expectativa, entre os escravos, de que sua servidão seria abolida rapidamente. Passaram-se mais de 30 anos, desde 1807, antes que os ingleses abandonassem a escravatura em seu império, período durante o qual ocorreram importantes rebeliões de escravos na Jamaica, em São Domingos, em Barbados, em Honduras e na Guiana. Todas elas, reprimidas com selvageria. Alguns dos rebeldes participantes argumentaram que a notícia do fim do tráfico de escravos os levara a crer que a própria escravatura havia terminado, um erro que muitas pessoas fazem até hoje.

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Jornalista e escritor, diretor do boletim Latin American Newsletter