Neste momento em que o Brasil continua sob o impacto das denúncias relacionadas com atos de corrupção, vale a pena fazer jornalismo investigativo na área política e analisar fatos passados que de uma forma ou de outra se refletem na atualidade.
Na cobertura midiática não raramente tem predominado o espírito moralista e golpista da velha UDN, um partido que, antes de 1964, sensibilizava a classe média e vivia nos quartéis conspirando. Depois de algumas tentativas frustradas – 1954 (suicídio de Vargas), 1955 (tentativa de evitar a posse de Juscelino Kubitschek) e 1961 (renúncia de Jânio Quadros e ações para o impedimento de João Goulart) – a UDN finalmente chegou ao poder em abril de 1964. Muitos dos golpistas se arrependeram, mas aí Inês já era morta. O povo brasileiro teve de suportar 21 anos de ditadura.
Alguém deve estar se perguntando: mas o que tem a ver uma coisa com a outra? Tem, sim. Claro, os tempos mudaram, a direita que quer preservar seus interesses, à custa da maioria do povo brasileiro, também se adaptou aos novos tempos. Não precisa mais dos militares para ‘manter a ordem’ e prefere fazer cabeças através de lavagem cerebral mídiática do pensamento único. Colunistas amestrados estão sempre atentos e são acionados para denunciar o que consideram ‘jurássico’.
Para se renovar de fato, o Brasil ainda precisa realizar as reformas de base, adaptadas aos tempos modernos, semelhantes às defendidas antes de 1964 e que resultaram na queda do presidente constitucional João Goulart. O tema, querendo ou não os udenistas de hoje, agrupados no PSDB e PFL, continua na ordem do dia. Isto é, estamos falando de reformas e não de contra-reformas que são tratadas pela mídia conservadora como necessárias para o país que as elites desejam manter.
‘Banho de ética’
É neste contexto que devem ser lembrados alguns fatos que caíram no esquecido baú da história, sobretudo porque desprezados pela mídia. Alguns colunistas tentam convencer a opinião pública que o tal ‘mensalão’ teve início no governo do PT. Outros preferem apontar o início, em 1998, com o então candidato a governador de Minas Gerais, e hoje senador, Eduardo Azeredo. Nem uma coisa, nem outra. O velho esquema de dinheiro suspeito destinado às campanhas políticas ou mesmo para a compra de parlamentares remonta às décadas passadas.
Nos tempos da ditadura, parlamentares que não se enquadrassem para manter a farsa do funcionamento do Congresso eram simplesmente cassados por 10 anos. O que havia nos bastidores em matéria de fraudes não era divulgado. O jornal que ousasse romper o silêncio sofria punições. Por isso, a opinião pública não era informada – muito pelo contrário: os órgãos de imprensa, os mesmos que hoje fazem denúncias, comprovadas ou não, compactuavam com o regime ditatorial.
Falcatruas no Parlamento aconteciam antes mesmo de 1964. Um dos fatos mais marcantes em matéria de corrupção, hoje parcialmente esquecido mesmo em teses acadêmicas, diz respeito à ‘doação’ de um punhado de milhões de dólares, em 1962, feita por intermédio do Instituto Brasileiro de Ação Democrático (IBAD), que de democrático só tinha o nome para iludir incautos. A ação nefasta do IBAD está documentada de forma magistral no livro 1964: A Conquista do Estado, de René Dreifuss, leitura obrigatória para quem quer conhecer a fundo o golpe civil-militar.
Em 1962, às vésperas da renovação do Congresso e dos governos estaduais, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, mandava uma circular ao Departamento de Estado chamando a atenção para ‘o alto interesse das eleições brasileiras’. Pois depois do alerta do golpista Gordon, como comprova o livro de Dreifuss, empresas como a Esso, Texaco, Shell, Bank of America, a Reader´s Digest, o Departamento de Estado norte-americano e numerosos banqueiros como Olavo Setúbal, Walther Moreira Salles, Magalhães Pinto (então candidato ao governo de Minas, para o qual seria eleito), Ângelo Calmon de Sá e Herbert Levy, para não falar de empresários, nacionais e estrangeiros, que temiam as reformas de base, soltaram dinheiro graúdo para eleger uma bancada conservadora, que tinha por objetivo manter os privilégios dos de sempre.
Um jovem economista que despontava no IBAD, Pedro Malan, mais tarde veio a ser ministro da Fazenda na gestão de Fernando Henrique Cardoso, levando adiante tudo o que a direita de antes de 64 almejava, ou seja, liquidar o Estado brasileiro, entregar de mão-beijada as estatais. Tudo com o apoio ou o silêncio constrangedor da mídia conservadora.
Entre os parlamentares que se elegeram com a ajuda do IBAD estão figuras cultuadas até por setores da ‘inteligenzia’ brasileira, como Mário Covas, posteriormente, também em plena democracia, um dos fundadores do PSDB e governador de São Paulo. Covas foi cassado em 1968, por discordar dos rumos do regime ditatorial, mas nos anos 1980 e 90 acabou voltando ao leito de origem do IBAD, defendendo com unhas e dentes um ‘choque de capitalismo’ no país e posto em prática por Fernando Henrique Cardoso. O choque eletrocutou vastas parcelas do povo brasileiro.
Covas morreu e Geraldo Alckmin se transformou em seu herdeiro político, e agora almeja ser presidente da República. Alckmin quer dar um ‘banho de ética’ no Brasil e para isso conta com a organização extremista católica Opus Dei, embora também conviva com denúncias de favorecimento a correligionários de verbas publicitárias da Nossa Caixa.
Época e circunstâncias
Está ou não de volta a velha UDN, golpista e moralista, hoje travestida de moderna? A mesma UDN que sempre fez das suas, mas contava com o silêncio da mídia conservadora e, nos anos de chumbo, com a ajuda da censura.
Antes que alguém diga que o tal partido acabou em 1965, com um ato institucional do general Castello Branco, ressalte-se que udenismo continuou – e continua até hoje – como um estado de espírito que seduz a classe média do gênero senso comum.
O que dizer quando um ex-presidente se refere aos pobres de forma preconceituosa, como fez Fernando Henrique Cardoso? Alguém ainda duvida que a UDN está mesmo de volta sob a égide do PSDB?
Não seria o caso de se valer da história para tentar entender melhor a prática política da elite brasileira, que varia conforme a época e as circunstâncias, mas em essência visa manter privilégios de sempre? Ou será que quando a história incomoda o presente, sobretudo os setores dominantes, o melhor (para eles) é mantê-la fechada a sete chaves? E nisso a mídia é mestra.
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Jornalista