A edição da prestigiosa revista semanal The Economist (24/2–2/3) publica uma matéria analítica comentando os 200 anos de aprovação pelo Parlamento britânico da lei que, em 1807, declarou extinto na Grã-Bretanha o rentável comércio de seres humanos escravizados na África. A matéria ocupa três páginas, com um box dedicado ao perfil do autor daquela lei, William Wilberforce, parlamentar tory convertido ao evangelismo cristão em 1787, quando então deu início a diversas tentativas legislativas para obstruir tal comércio, obtendo êxito somente 20 anos depois.
O texto reconhece que o principal mentor da campanha abolicionista no poderoso império britânico foi Thomas Clarkson, um advogado que, desde jovem e por toda a vida, se dedicou à tarefa, como um precursor do que hoje conhecemos como ‘direitos humanos’. Foi ele quem, entre atividades de agitação e informação pública, persuadiu o conservador moralista Wilberforce a abraçar a causa no parlamento, cuja maioria representava justamente os interesses dos investidores naquele lucrativo comércio – incluindo parcela importante da igreja anglicana.
Sociedade vitoriosa
Não foi uma campanha fácil. A opinião pública nos grandes centros europeus consumidores de açúcar, ouro e outras iguarias produzidas nas colônias praticamente desconhecia as condições sociais de produção e do trabalho escravo nas terras longínquas da África, das Américas e do Caribe. Clarkson e colaboradores, aos quais se deve a primeira imagem dos porões de um navio negreiro apinhado de escravos (ele mandou imprimir e distribuir 700 cópias pelo país, chocando a muitos), tiveram de agir na ofensiva. Ele organizou o primeiro boicote ao consumo de açúcar produzido pelos escravocratas, com adesão de mais de 300 mil britânicos e desestabilizando o mercado.
A matéria de The Economist também destaca a participação dos senhores da guerra africanos para o êxito do comércio escravo. Observa, por exemplo, que ‘muitos dos escravos vendidos aos europeus foram homens e mulheres capturados nas batalhas entre tribos como Asante e Acan’.
Tão integral era o comércio de escravos em muitas sociedades africanas no período que Zey, um rei de Asante, 62 anos depois da abolição, ainda em 1872, escrevia à coroa inglesa insistindo no restabelecimento do negócio. Mas acrescenta que antes do comércio com os europeus, escravos feitos em guerras podiam eventualmente ser integrados à nova sociedade vitoriosa como parte dela.
Obstáculo à reconciliação
Todo o texto é construído para destacar a crueldade da escravidão, comparada pela revista ao holocausto nazista. Ressalta que os 200 anos da lei abolicionista inglesa, cujas repercussões foram poderosíssimas no contexto da época – quando a Grã-Bretanha agia como maior poder controlador dos oceanos, por sua vez principal via de comunicação do comércio –, estão ensejando uma série de debates sobre as responsabilidades dos países beneficiários do tráfico negreiro. Não somente em relação ao atual status da África, de onde teriam sido seqüestrados mais de 20 milhões de escravos entre os séculos 15 e 19, mas também no que diz respeito aos descendentes daqueles escravos hoje espalhados pelas Américas.
O foco da discussão é estabelecer se tais países devem reparar os danos materiais infligidos às comunidades africanas e afrodescendentes. Num país como o Brasil, até hoje de mentalidade escravocrata, estes sofrem na pele as conseqüências do holocausto provocado pelo comércio de seres humanos, cuja base ideológica foi o racismo supostamente científico. É essa ideologia, que setores brasileiros têm combatido há mais de século, o obstáculo à reconciliação do Estado com a nação brasileira, esta desde sempre fraturada enquanto não enfrentar tal problema sem temores.
Retomando a luta
Por que, de todos os países implicados na venda de carne humana – a exemplo da Inglaterra, França, Holanda, Espanha e mesmo Estados Unidos da América –, o Brasil e sua contraparte, Portugal, são os mais recalcitrantes no aceite à sua culpa, não apenas moral mas econômica, sobre as condições miseráveis impostas aos afro-brasileiros? Será por que as elites de mando nesses países, e particularmente no Brasil, trabalham com a hipótese da amnésia como componente básico da memória histórica que marca a nossa trajetória social?
Passa da hora de o país que, até por volta de 1880, mais importou e se utilizou do comércio e mão-de-obra escravos da África para se constituir como Estado (Brasil, hoje uma das mais importantes economias emergentes do mundo capitalista), ser chamado à responsabilidade de que tanto se esquiva. Acionar nos tribunais locais e cortes internacionais tanto o Brasil quanto Portugal, inclusive setores econômicos privados e públicos herdeiros do tráfico, exigindo indenização material (inclusive em dinheiro) para os afrodescendentes, é a meta que neste ano de 2007 pretendemos atingir, retomando uma luta iniciada em 1993.
Para isso estamos montando o comitê Reparação é Justiça Brasil (RJB), buscando apoios internos e no exterior. Devemos, como primeiro passo, articular um bate-papo entre os interessados no debate, a ser realizado até o final de abril de 2007 na cidade de São Paulo. Adesões e contribuições, de todas as cores e credos, evidentemente são bem-vindas! Tal debate somente será possível com a conjugação de todos e todas as forças interessadas.
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Jornalista, professor da Universidade Federal da Bahia