O marco temporal voltou aos noticiários jornalísticos entre maio e junho de 2023. A novela que começou em 2007, com o projeto de lei 490, passou por votação na Câmara dos Deputados e, na semana seguinte, o julgamento da tese seguiu no Supremo Tribunal Federal (STF).
Com a atualidade, o tema foi pautado sob a perspectiva política, jurídica e, até mesmo, econômica. Já os diretamente afetados pela matéria, os povos indígenas, foram relegados (quando muito) ao posto de fonte.
Verdade que em 2023 as vozes indígenas ganham espaço com os discursos de personalidades políticas de origem indígena, como a deputada federal Célia Xakriabá e a Ministra Sônia Guajajara. No entanto, parecem estar mais na ordem de “ouvir todas as fontes”, do que de fato visibilizar a perspectiva indígena. Para os povos originários, mais do que posse e subsistência, terra faz parte de quem são.
Ainda que os veículos mais bem intencionados busquem evidenciar a inconstitucionalidade da tese que tenta vincular a demarcação de terras indígenas à sua ocupação, em 5 de outubro de 1988, o fato é que equipara legisladores e os povos que vêm buscando seus direitos antes mesmo da promulgação da Constituição.
Neste artigo pretendo dialogar os preceitos do jornalismo de subjetividade, proposto pela professora Fabiana Moraes, com a recente cobertura sobre o marco temporal, para evidenciar como o jornalismo pode estar dando forças para uma tese inconstitucional, quando busca apenas noticiar e não informar.
Quando uma manifestação contra o marco temporal vira nota sobre engarrafamento
Santa Catarina tem especial relação com o julgamento da tese do marco temporal pois é onde está localizada a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, que está em disputa entre o governo do estado e o povo Xokleng – caso em julgamento pelo STF.
No entanto, a despeito de toda a repercussão que o caso pode significar para povos indígenas de norte a sul do país, a imprensa local parece se importar mais com o engarramento causado pelos manifestantes que chamam a atenção para as consequências que o caso pode trazer para suas vidas.
Neste caso, o critério de noticiabilidade de interesse público parece estar mais centrado nos quilômetros de lentidão do que, de fato, nas consequências que o julgamento podem representar para os personagens das notas, uma vez que nenhum indígena foi entrevistado. Por outro lado, a concessionária da rodovia e a Polícia Rodoviária Federal foram procuradas para obter informações sobre o tamanho do engarrafamento, o número de manifestantes e a duração da manifestação.
Mais um apagamento sútil nas notas: cidades que tiveram manifestações são citadas, os povos que compunham a manifestação não.
Como bem evidenciou Ângela Bastos e sua equipe em Originários SC, Santa Catarina é composta por 4 etnias que reúnem cerca de 17 mil pessoas indígenas, espalhados do oeste ao litoral. Ao deixar uma informação que particulariza os manifestantes, seus territórios e histórias, a imprensa deixa passar uma oportunidade de humanizar seus personagens.
Sob uma pretensa objetividade, os veículos jornalísticos distanciam-se do fato que motiva a manifestação, apenas citando e, assim, abre espaço para invisibilizar manifestantes e sua causa.
Para Fabiana Moraes este movimento repleto de reduções “mesmo de maneira não intencional, promove a manutenção de violência em vários níveis” (MORAES, 2019, p. 214).
Ao nos convidar a pensar num jornalismo de subjetividade, a professora e pesquisadora também coloca uma reflexão importante sobre os critérios noticiosos excludentes que geram pautas – igualmente excludentes.
Se o interesse público está nos quilômetros de engarrafamento e não na injustiça que determinados povos estão expostos, não estaria o jornalismo diminuindo a importância do marco temporal?
A pobreza na cobertura sem o conhecimento indígena
Se o critério de proximidade não é suficiente para aprofundar uma pauta que coloca em embate o estado catarinense e seus povos indígenas, o que esperar da grande cobertura nacional?
A hierarquia dos personagens envolvidos no tema (e nenhum deles indígena, mas sim a Câmara dos Deputados e STF) parece ainda mais importante que o fato da tese colocar em cheque a demarcação de territórios que estão em processo de homologação, além daquelas que sequer podem ser demarcadas caso o PL 490 entre em vigor.
Na reportagem da Folha, novamente indígenas são apenas mencionados, quando a mesma cita a existência da Frente Parlamentar Indígena (não entrevistada, em comparação com a citação entre aspas do presidente da Frente Parlamente Agropecuária.)
Assim, cabe perguntar, de que modo o jornalismo não está apenas reproduzindo uma lógica positivista ao focar na tese jurídica e na relação política que envolvem o marco temporal? Mais, de que modo o jornalismo não está favorecendo o discurso do marco temporal ainda que o critique?
A ampliação de veículos especializados
A análise do noticiário factual nos faz perguntar: só há lugar para os indígenas em veículos especializados ou reportagens especiais? Veículos como Samaúma e Amazônia Real, ao assumirem uma posição em sua cobertura, parecem ser mais objetivos ao expressarem sua subjetividade, realizando análises históricas, entrevistas com líderes e especialistas que estão diretamente envolvidos com a defesa dos territórios indígenas.
Se o trabalho destes veículos não têm o alcance que a grande imprensa comercial, por outro lado apresentam exemplos de como o jornalismo (mesmo se feito às pressas) pode ampliar sua cobertura, entrevistando líderes, instituições e, minimamente, fazendo uma abordagem histórica sobre o tema.
Porque se o marco temporal busca apagar o que aconteceu antes de 1988, o jornalismo não precisa fazer o mesmo.
Referências
Moraes, F. (2019). Subjetividade: ferramenta para um jornalismo mais íntegro e integral. Revista Extraprensa, 12(2), 204-219.vgf
Reportagem publicada originalmente em objETHOS
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Luiza Mylena Costa Silva é Doutoranda do PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS