Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

O que há no tabuleiro de Marina para negociar a sobrevivência do seu ministério?

(Foto: Lula Marques/ Agência Brasil)

O jogo só acaba quando termina, com o apito final do árbitro. A frase é muito usada pelos jornalistas esportivos na cobertura de futebol no sentido de alertar a torcida que o tão esperado gol pode acontecer nos últimos segundos da partida. Nessas ocasiões, ajuda ter fé no time. Lembrei-me dessa expressão quando surgiram as primeiras notícias de que o deputado Ismael Bulhões Jr. (MDB-AL), relator da Medida Provisória (MP) 1154/23, sobre a reestruturação dos ministérios no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), havia dado uma rasteira na ministra Marina Silva, esvaziando o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Imediatamente, espalhou-se pelas redações a ideia de que “esse filme nós já vimos”. Em 13 de maio de 2008, no segundo governo de Lula, Marina demitiu-se do Ministério do Meio Ambiente quando a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, lhe enfiou goela abaixo as obras da hidrelétrica do Rio Madeira, em Porto Velho (RO). Desta vez, a divulgação do relatório da medida provisória coincidiu com a negativa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) de autorizar a Petrobras a fazer pesquisas em uma jazida de petróleo na foz do Rio Amazonas.

Na teoria, a história do Ibama com a Petrobras não tem nada a ver com o relatório do deputado Bulhões. Até porque outras pastas ministeriais também foram esvaziadas, como é o caso do Ministério dos Povos Indígenas, da ministra Sonia Guajajara. A demarcação de terras indígenas foi transferida para o Ministério da Justiça e Segurança Pública. O Meio Ambiente perdeu funções importantes como o Cadastro Ambiental Rural (CAR), a Agência Nacional das Águas (ANA) e o Serviço Florestal. Na prática, se existe alguma ligação entre a história do Ibama com a Petrobras o tempo vai mostrar. Marina mostrou-se irritada com o esvaziamento do seu ministério. Mas o filme de 2008 não se repetiu: ela não pediu as contas. Muito pelo contrário. Disse que o seu ministério é uma trincheira da luta pelo meio ambiente que merece ser preservada. Fiquei surpreso com a atitude da ministra, porque ela não é de levar desaforo para casa. Lembrei-me de quando a conheci, em 1990, durante o julgamento dos matadores de Chico Mendes, seringueiro, ambientalista e sindicalista tocaiado e morto a tiros na porta da sua casa, em 22 de dezembro de 1988, em Xapuri, uma pequena cidade da Floresta Amazônica, no interior do Acre. Ele foi morto por Darci Alves, a mando do seu pai, Darly Alves, grileiro de terras na região. Repórteres de todos os cantos do mundo foram a Xapuri acompanhar o julgamento dos dois. Eu estava lá, e fui avisado por colegas que Marina não gostava de ser contrariada. Ela tinha 32 anos e era dona de um conhecimento aprofundado da realidade dos povos da floresta. Era um bom papo, que sempre rendia uma matéria interessante.

A situação da ministra Marina hoje é bem diferente da de 2008, quando pediu demissão. Vamos aos fatos. Nos últimos quatro anos, durante a administração do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a Floresta Amazônica e os seus povos originários sofreram todos os tipos de agressão, como a derrubada de milhares de árvores pelos grileiros de terras e madeireiros ilegais e a invasão das áreas indígenas por garimpeiros incentivados pelo governo federal. Esse incentivo resultou em situações como a dos yanomami, reduzidos a pele e osso pela fome causada pela invasão, por garimpeiros, de sua reserva, na fronteira de Roraima com a Venezuela. A devastação da floresta e a agressão aos indígenas provocou indignação na comunidade internacional, que resultou em ameaças de boicote a produtos brasileiros nos mercados mundiais, o que afetaria o agronegócio. A indicação de Marina para o Ministério do Meio Ambiente foi uma garantia para o mundo de que a preservação da Amazônia e dos seus povos originais voltava a ser uma prioridade do governo brasileiro. Essa é a grande diferença da Mariana de 2008 para a dos dias atuais. Hoje, ela é a garantia para a comunidade internacional de que o governo brasileiro está falando sério sobre os seus compromissos com a preservação ambiental. Recentemente, Lula esteve na reunião dos sete países mais ricos do mundo, o G7, em Hiroshima, no Japão, onde reafirmou os compromissos do seu governo com a preservação da Floresta Amazônica e os seus povos originais. Vários países estão investindo milhões de dólares nos projetos de preservação da floresta. Tudo o que descrevi não torna a ministra intocável no seu cargo. Mas a fortalece para jogar o jogo do poder dentro da estrutura governamental, uma prática que acontece em todos os governos ao redor do mundo.

A história do relatório da MP nasceu quando Lula assumiu o governo. Ao tomar posse, ele editou a medida provisória que alterou a estrutura ministerial deixada pelo ex-presidente Bolsonaro pela atual, com 37 ministérios. O relatório precisa ser votado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado até esta quinta-feira, 1º de junho, caso contrário perderá a validade e voltará a valer a estrutura ministerial do governo Bolsonaro. O governo acredita que há espaço para negociar com os deputados e senadores vários pontos do relatório de Bulhões, especialmente os ligados às pastas de Marina e da ministra Sonia Guajajara. Não vai ser fácil, porque há muitos interesses envolvidos. Tem sido tradição de todo governo que assume mexer na estrutural ministerial. Não me lembro de ter dado problema como estes que estão acontecendo com o governo Lula, especialmente nas áreas ambientais e da questão indígena, ambas muito sensíveis e cheias de conflitos, especialmente agrários. Esse jogo só termina quando os deputados e senadores votarem. Como falei na abertura da nossa conversa. O jogo só acaba quando o juiz der o apito final.

Publicado originalmente em Histórias Mal Contadas.

***

Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.