Haveria ainda o que contar sobre Octavio Frias de Oliveira, que hoje [domingo, 5/8] faria 100 anos? Ou sobre sua surpreendente metamorfose de negociante em jornalista, com decorrente proeminência da Folhaentre os jornais do país?
Fatos a recapitular restam poucos; e mesmo esses apenas para recompor alguma perspectiva mais reveladora. Ainda assim, exíguo resumo já demonstra como tal narrativa seria refratária a interpretações novas. Em 10 de agosto de 1962, na semana em que Frias completou 50 anos, ele e Carlos Caldeira Filho (1913-1993) compraram a Folhade José Nabantino Ramos (1908-1979). Todos também sabem como um aviso sorridente acompanhou a entrega do cheque: “Zé, só é bom pra segunda-feira, viu?”
Na segunda, depositado o cheque, Frias assumiu um dos três cargos de diretor da empresa que publicava o jornal. Três meses depois, o publicitário Caio de Alcântara Machado (1926-2003), que financiara parte da transação, transferiu a Frias a presidência da empresa. A prioridade do novo presidente era então a dos malabarismos financeiros, até porque lhe parecia nebulosa a direção editorial que também assumiria.
Mais difícil de compor do que a continuação sabida dessa história é o retrato revelador do homem. A visão além do que a personalidade manifestava e, num ou noutro ponto, além até do que ele mesmo se interessou por saber a respeito de si mesmo. Não porque fosse reservado, que não era. (Ou, antes, era, porém muito seletivamente, em temas sensíveis.) No convívio social, familiar ou profissional, a fala era animada, até esfuziante na extroversão natural da personalidade.
Mas verve, no caso, nada explica. O gosto por cavalos e motos talvez manifestasse propensão inconsciente a exercitar a vontade no domínio de forças superiores à sua. Interpretações simplistas, contudo, tampouco satisfazem. A intrigante questão persiste. Qual o conjunto de atributos que o habilitou a motivar em tanta gente a satisfação das aspirações dele, a projetar sua vontade além da própria vida? Que elementos compõem esse poder incomum que nem adversários e detratores contestam?
Noticiário defectivo
Conhecimento? Muita gente busca habilitar-se ao sucesso por via acadêmica. Hoje, com aceleração dos avanços científicos e tecnológicos, há cada vez menos espaço para aptidões inatas desacompanhadas de preparação técnica. Interessante conjectura imaginar que chances teriam hoje Frias e Caldeira, mesmo com a vitalidade e ambição que os animavam nos meados do século passado. Quando desfizeram amigavelmente a parceria, em 1992, Caldeira usou seus meios e tirocínio para consolidar a parte patrimonial que lhe tocou. Mas Frias ainda tinha vontade e planos de expansão, e aptidões para implementá-los.
Cultivara a seu modo a inteligência superior de que era dotado. Aprendeu inglês em nível de proficiência que, apesar do sotaque atroz, o habilitava a negociar sem intérprete algum contrato de milhões de dólares para compra de papel ou equipamento. Ou para acompanhar na imprensa internacional modelos de jornalismo que pudessem inspirar nele o aperfeiçoamento jornalístico da Folha.
Nunca teve pretensões intelectuais. Sua cultura livresca, aliás modesta, satisfazia apenas o fascínio que tinha por negócios. Nestes, sim, decerto encontrava a satisfação estética do enxadrista em partida bem conduzida. Sem nunca haver cursado economia nem administração, soube organizar suas empresas e selecionar, motivar e liderar pessoal habilitado a suprir o que lhe faltasse de conhecimento específico.
Duelava todos os dias, na área editorial, discutindo com jornalistas os termos em que os textos opinativos deveriam equilibrar interesses da comunidade com os do poder. Cumpria esse papel muitas vezes em condições adversas e até perigosas, como as que lhe seriam impostas pelos generais que governaram o país. Qual o segredo?
Empatia? De política e psicologia entendia, e muito, mas não com base teórica, e sim como extensão do conhecimento intuitivo e empírico da natureza humana, conhecimento apurado na crueza da experiência de esgrimir vontades e pretensões. Não precisou de nenhum curso de psicologia para ler pessoas. Nele, este era decerto um traço inato. Em poucos minutos de interação apreendia dados essenciais do caráter do interlocutor, o que este pretendia dele, contra qual intenção dissimulada se prevenir. E o que de proveitoso a pessoa lhe propunha. Mas sobretudo era capaz de ver as coisas da perspectiva do outro.
Reveladora quanto a isso é a comparação entre sua personalidade e a do antecessor. Nabantino dava duas razões para a decisão de vender a Folha: desânimo com o recalcitrante passivo do balanço e “deslealdade” de jornalistas que, ingenuamente, ele julgara retribuírem com amor filial as oportunidades, o prestígio e a remuneração que supunha lhes conceder. Que no momento da verdade eles tivessem desertado para aderir à greve de 1961, fora como esvaziar de sangue seu coração. Vítima da miragem da psicanálise, Nabantino talvez interpretasse o episódio como reencenação simbólica do parricídio primordial inscrito no credo freudiano.
Para coisas assim a cultura inglesa tem uma palavra: “nonsense”. Frias, ao contrário, era homem de “no nonsense”. Quando jornalistas promoveram greve em 1979, tratou os piqueteiros um tanto paternalmente, mas sem abdicar da autoridade. Foi dialogar com eles na entrada do prédio do jornal, mandou servir-lhes café, ouviu, mas não cedeu: “O jornal vai sair”.
E saiu. Com noticiário defectivo (até gente da família teve de ser mobilizada), mas sem omitir a cobertura da greve dos jornalistas. Poucos deles poderiam contestar depois que, ao longo dos anos, bem menos informação teria chegado aos brasileiros se Frias não tivesse ocupado seu lugar na imprensa do país.
Visão abrangente
Qual o segredo? Carisma? Não era de seu feitio recorrer a charme, adular, induzir pessoas a pensar bem dele. Talvez nalgum plano subjacente da consciência tivesse a percepção de que o carisma autêntico é visto, não deliberadamente exibido, porque não se virtualiza quando não percebido espontaneamente pelo outro. Seu carisma emanava do calor da personalidade, da sugestão de sensibilidade e da manifestação tácita da autoridade que se expressava até sem declaração.
Entre os que selecionou para assisti-lo em seu projeto nunca faltaram os que genuinamente acreditavam em sua liderança e não se viam humilhados por aceitá-la. Afinal, era relação que não precisava ir além da profissional. Isso bastou para sossegar o zoológico de egos hipertrofiados que é uma Redação.
Nem sempre conseguia estabelecer entre ele e seus colaboradores, empregados ou parceiros de negócios a receptividade fácil de outras ocasiões. Em muitos casos a situação era de antagonismo, nada propícia à acomodação. Paciência e insight poderiam salvar uma transação, mas nem sempre ele era socorrido pela espontaneidade genuína da simpatia. Contudo, por uma combinação de sorte e desígnio, ela prevalecia, sim, em um conjunto suficiente de situações críticas.
Como a história atesta, bastaram a ele esses atributos nada simples, e que dificilmente se conjugam nesse nível. Não que desprezasse outros. Tivesse priorizado tempo para isso, sem dúvida teria fruído mais a literatura e outras artes, ou os saberes de história, filosofia e ciência que admirava em Cláudio Abramo, Luiz Alberto Bahia, Paulo Francis ou José Reis.
Sabia que o foco de sua visão nunca seria tão abrangente. Mesmo com intermitente impaciência, sujeitava-se ao compromisso diário de domar palavras rebeldes para as quais lhe faltara vocação, mas que prestigiava nos que o assistiam na lida com elas. Nunca cedeu à vaidade de escrever. Compreendeu que há mais no jornalismo do que talento de redator.
Essa visão abrangente não pode excluir a verificação de que jornal é também produto industrial. A singularidade da contribuição de Frias está aí, na síntese do senso jornalístico com o da gerência sensata, o reconhecimento da prosaica necessidade de (como dizia) catar clipes do chão para preservar a saúde financeira e a eficácia operacional da editora do jornal. Foi com essa conjugação singular de talentos que ele estendeu para tantas estrelas do jornalismo brasileiro um horizonte no qual brilhar.
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[Aldo Pereira, 79, começou a trabalhar na Folha em 1957, como redator, e depois se tornou editorialista e colaborador do jornal. Trabalhou ainda nos jornais O Estado de S. Paulo e Diário da Noite e em publicações dos grupos Visão e Abril]