Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Afinal, quem escreve a História?

A morte, há poucos dias, do escritor mineiro Autran Dourado, aos 86 anos, traz de volta episódios e narrativas da História política brasileira das últimas décadas a respeito de acontecimentos que continuam a esperar a sua elucidação. Autor de livros importantes –como O Risco do Bordado, A Barca dos Homens, Ópera dos Mortos e Os Sinos da Agonia, entre outros –, ganhador do Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, e do Prêmio Camões, Autran teve também atuação política destacada, principalmente como secretário de Imprensa do presidente Juscelino Kubitschek. E é dessa época um episódio que ainda precisaria de uma versão definitiva e que ele narra em Gaiola Aberta – Tempos de JK e Schmidt, editado em 2000 (o poeta Augusto Frederico Schmidt foi das pessoas que mais influenciaram o então presidente).

Quando trabalhava na revista Visão, no final da década de 1960, o autor destas linhas ouviu do então jornalista, depois secretário de Estado e ministro do Tribunal de Contas fluminense Luiz Alberto Bahia episódio que explicaria a origem da famosa e repetida frase jusceliniana “Deus poupou-me do sentimento do medo”, que está inscrita em pedra, em Brasília. Segundo Bahia, a frase foi uma reação de JK ao veto de coronéis do Exército e da Aeronáutica, em manifesto, à candidatura de Juscelino à Presidência da República, em 1955. Juscelino, disse Bahia, foi logo cedo à redação do jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em busca de apoio; sabia que estaria liquidado se não reagisse; e o jornal era, então, muito forte na área política.

Paulo Bittencourt, dono do jornal, aceitou desafiar o veto militar, mas condicionado a uma entrevista do próprio JK, que seria escrita (inclusive criando a frase que se tornaria famosa) por Álvaro Lins, expoente da crítica literária e editorialista do Correio. Juscelino teria lido o texto e concordado com tudo, mas pediu algumas horas de prazo para ir a Belo Horizonte e “ouvir nossos amigos de Minas”. A entrevista foi para a oficina do jornal e ficou pronta para ser impressa. Mas a confirmação de JK não vinha, passadas muitas horas. As informações obtidas em Belo Horizonte, por telefone, diziam que ele continuava a portas fechadas com a cúpula do PSD mineiro.

A frase que incomodava

Já era mais de 2 horas da madrugada quando Álvaro Lins entrou na sala, acordou Paulo Bittencourt e anunciou que JK liberara por telefone o texto – que teve enorme repercussão política e permitiu um movimento de repúdio ao veto militar. Bahia, entretanto, ao relembrar o episódio, dizia ter certeza que JK não respondera e Álvaro Lins é que assumira o risco e os possíveis ônus (acabou sendo chefe da Casa Civil da Presidência de JK). Aí termina a versão narrada por Luiz Alberto Bahia.

Passado quase meio século, outra versão surgiu no livro de memórias de Autran Dourado. Um trecho: “JK saiu e Schmidt se pôs a escrever. A certa altura ele me perguntou se eu achava que Juscelino era mesmo corajoso como arrotara. Eu disse achar, apesar de Benedito Valadares dizer que JK queria bancar o Tiradentes com o pescoço dos outros.” “Até que ponto?”, perguntou o poeta. Autran respondeu: “Pode escrever: Deus poupou-me o sentimento do medo.” Schmidt: “É bonita e de muito efeito. Mas será que o nosso homem a dirá?” E Autran: “Vamos ver, acho que sim, experimentemos.”

Segundo Autran Dourado em suas memórias, quando o texto foi mostrado a Juscelino, ele se sentiu inquieto com a frase e pediu para ir à casa do general Nelson de Mello, que depois seria ministro do Exército. Este também ficou incomodado ao lê-la e na mesma hora chamou sua esposa, dona Odete, para quem leu a frase. E quando ela perguntou ao marido se ele é que iria dizer a frase, o general respondeu: “Não, é o doutor Juscelino aqui.” Dona Odete pediu licença para dar alguns telefonemas a amigas, saiu e voltou meia hora depois, quando garantiu a JK: “Pode dizer; numa hora destas é preciso se mostrar homem. É o que se espera.”

Fonte de inspiração

JK, diz Autran Dourado, saiu dali e foi para a sede do PSD carioca, leu o discurso com a frase e foi ovacionado. Repetida em todas as conversas políticas, a frase tomou conta do mundo político. E acabou superando o veto militar. Juscelino elegeu-se presidente, Schmidt tornou-se um de seus principais conselheiros políticos, Álvaro Lins foi para a embaixada em Portugal e Autran Dourado assumiu a área de Comunicação da Presidência.

Mais de meio século depois, com os personagens centrais já mortos, assim como os narradores das versões divergentes do episódio, permanecem as dúvidas. Quem escreveu o texto: Augusto Frederico Schmidt, Álvaro Lins ou Autran Dourado? Quem Juscelino consultou: Benedito Valadares, os políticos mineiros ou o general Nelson de Mello? De quem foram as palavras decisivas: dos conterrâneos de JK ou da esposa do general – referendadas por ele? O que foi crucial para superar algo tão grave como um veto conjunto de setores do Exército e da Aeronáutica?

Seja como for, o episódio foi decisivo na sucessão de 1955. E agora, com Juscelino, Paulo Bittencourt, Augusto Frederico Schmidt, Álvaro Lins, o general Nelson de Mello e sua esposa, além de Luiz Alberto Bahia, já falecidos, a morte do último protagonista central – Autran Dourado – deixa pouca ou nenhuma possibilidade de esclarecer definitivamente a História, registrada na pedra em Brasília.

Faz diferença? Faz. Sempre é importante saber como se escreve ou escreveu a História, quais são as suas lições. Vivemos momentos difíceis, em termos políticos, econômicos, sociais, diante de crises muito graves em âmbito planetário ou nacional. Temos decisões complicadas a tomar em quase todas as áreas. A História e seus personagens podem ser fonte importante de inspiração.

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[Washington Novaes é jornalista]