Era a segunda metade dos anos 60.
1. Loira oxigenada, gostosona, fogosa, seios enormes e bonitos (depois ela os desbastaria um pouco), expansiva quase ao exagero, rindo sempre, disponível – já logo disseram: ela tem programa na tevê porque dá pro diretor. Galinha.
2. Vacilando no português, usando gíria do povão, voltada ao mundo artístico e assim desligada da política, das notícias ditas “importantes”, do que acontecia no mundo – mataram: loira burra!
3. Vinda de meio humilde (seu pai, violinista, mexia com circo e música caipira), despreparada, ingênua, aberta, espontânea, não teria armas para sobreviver num meio – a tevê – habitado por gente boa, mas também por bruxas e traíras, onde um não vacila na hora de empurrar o outro pro buraco a fim de tomar seu posto. Não vai durar!
Era esse o panorama em redor de Hebe Camargo, no ano de 69 (1969), quando a revista em que eu trabalhava – Realidade, antecessora da Veja – “pautou” a ideia de se fazer um perfil de Hebe. Seu programa na TV Record, então a grande emissora brasileira, com os instigantes festivais de música, era produzido por uma equipe de craques (chamavam-na internamente de Equipe A). No horário nobre, o programa atingia audiências quase inimagináveis nos dias de hoje. Literalmente, parava a cidade.
“Não vá”
Previa-se que a história pessoal de Hebe na Realidade resultasse numa reportagem picante, uma sucessão de amantes e gaviões, envolvimento com homens por dinheiro, denúncia de tramas na diretoria e da influência até de políticos para que ela mantivesse sua posição na tevê.
Realidade era um ninho de feras. Alguns de seus repórteres mais famosos – Narciso Kalili, José Carlos Marão, Luís Fernando Mercadante, Carlos Azevedo, João Antônio, Eurico Andrade, Roberto Freire (este um perigoso mix de repórter com psiquiatra e psicanalista, que ele também era) – poderiam, se fosse o caso, transformar o perfil de Hebe numa sucessão de escândalos, amores de interesse, casamentos destruídos em busca do troféu (a loira gostosona), futricas e fofocas do mundo sempre efervescente, e às vezes perverso, da televisão.
Por questão de destino (como tinha acontecido antes, com minha ida para a Guerra do Vietnã), a “pauta” Hebe foi atribuída a mim. Não sabia nem como começar. Saí como um cachorro perdigueiro atrás de rastros e sinais, para ver de que maneira poderia confirmar – ou aumentar – o lado sombrio da vida de Hebe, que era o aspecto preferido da imprensa escrita, sempre (então mais ainda) preconceituosa com o povo da tevê.
Antes da reportagem, já tinha tido um contato com Hebe. Assim que cheguei da Guerra do Vietnã, no que foi uma surpresa para mim, passei uns dias “famoso”. Quase todos os programas de entrevista me convidaram para falar da minha aventura como correspondente de guerra lá no fim do mundo.
O programa da Hebe foi o primeiro a me cercar. Eu tinha que ir, e ainda, me comprometer a não participar de nenhum outro programa naquela semana. O programa da Hebe na Record era assim: exigia ser o primeiro e ainda regulava a ida a outras tevês.
Alguns amigos me disseram:
– Não vá no programa da Hebe, é muito popularesco. E periga ela pedir pra você mostrar a perna mecânica, dizendo: “Mas que gracinha!…”
Na ponta da língua
Fui com um pé atrás (o bom). A parafernália de um programa de tevê ao vivo – o da Hebe era ao vivo – é tão grande que só fui falar com a apresentadora já no palco, o programa já no ar. Não houve condição para vê-la antes, combinar alguma coisa. Foi tudo no “sufragrante”.
Alguém ficou comigo ali no corredor esperando a hora e, quando Hebe disse que o programa já tinha recebido gente de todo tipo, mas nunca entrevistara um “herói de guerra” (tremi), a pessoa me empurrou para o palco e me vi diante daquele povão (no auditório), eu assustado e perdido.
– Com vocês, um herói: o repórter José Hamilton Ribeiro!
Eu não era nada daquilo. Herói é quem vai pra guerra defender seu país e lá se machuca, ou quem arrisca a vida para salvar outro. Eu era só um repórter, o fato de ter me ferido na guerra não me levava a nenhuma condição de herói ou coisa parecida. Pensei comigo: esta entrevista vai acabar mal…
Estava tenso e nervoso, no começo. À medida, porém, que as perguntas se sucediam, passei a sentir-me seguro e confiante. Aquela mulher – aquela bela mulher! – passava calor, passava carinho e a gente sentia que tudo nela era, ou parecia, verdadeiro: suas perguntas, sua reação espontânea, o modo como expressava o sentimento ali, da hora, os votos e as aleluias que desejava pra gente.
Enfim, a entrevista transcorreu de maneira agradável, senti-me tratado com dignidade e, toda vez que a espontaneidade dela levava a um assunto mais íntimo ou delicado, ainda assim Hebe o fazia com naturalidade e visível boa intenção.
Na semana que se seguiu ao programa da Hebe, em todo lugar que eu ia, faziam referência a ele: dava impressão de que a cidade toda tinha visto.
Uma reação diferente tive num programa de auditório, no Rio de Janeiro. Programa do tipo que tem uma pessoa (que não aparece na tevê) comandando o auditório:
– Agora bate palma!
– Agora grita, só grita.. Mais alto, mais alto!
– Agora grita e bate pé.
Enfim, um programa animado… O apresentador deixou para o fim esta pergunta:
– Zé Hamilton, você foi na guerra, saiu ferido, mas voltou e continua trabalhando. É difícil ser repórter de uma perna só?
Respondi (já tinha a resposta na ponta da língua):
– Bem, ser repórter com uma perna só é mais difícil do que com duas, mas é mais fácil do que com quatro…
Fada boa
Ter estado no programa da Hebe, como entrevistado, não ajudou muito na reportagem que eu devia fazer para a Realidade. Afinal, tudo ali fora público, e uma boa reportagem é justamente aquela que mostra coisas que os outros não viram.
Saí a campo, atrás de pessoas e fatos que ajudassem a contar aspectos da história (que eventualmente as pessoas não conheciam) daquela mulher de sucesso, que tanta inveja causava às mulheres (não a todas) e tanto desejo provocava nos homens. Procurei conhecidos, parentes, colegas e, principalmente, pessoas que não gostavam dela ou tinham alguma coisa grave a contar sobre ela, que eu pudesse confirmar.
Ó, andei e rolei quase um mês remoendo o assunto Hebe, procurando pelo em ovo.
Afinal, a reportagem foi publicada. Quem esperava uma história picante, cheia de traições e trocas de cama, esperou em vão.
Vista hoje, 43 anos depois, aquela peça precisaria de ajustes, aqui e ali. No seu conteúdo, porém, poderia ser mantida.
Hebe Camargo, aquela loira oxigenada, de seios enormes e bonitos, sorriso fácil e braços sempre abertos, era uma pessoa verdadeira, autêntica, espontânea, natural, com enorme capacidade de observação e apreensão dos fatos, dotada de inteligência fina e instintiva que fazia com que ela se destacasse no meio em que trabalhava e vivia. Um ser especial, iluminado.
Não disse, mas gostaria de ter dito: ela é a fada boa da televisão brasileira, será a sua rainha e brilhará perante as câmeras – contando apenas com seu talento e sua energia, que parecem inesgotáveis – até morrer de repente.
***
[José Hamilton Ribeiro é jornalista]