O poeta, tradutor, professor e publicitário Décio Pignatari, morto no domingo em São Paulo, aos 85 anos, deixa como legado “o rigor, a consciência da linguagem e uma linha antilírica”, segundo o também poeta Antonio Carlos Secchin. Trata-se de um legado de “atitude perante a poesia”, para além da prática poética. “Não consigo imaginar alguém escrevendo poesia hoje, no Brasil, ignorando o que escreveu Décio Pignatari”, diz Frederico Barbosa, diretor da Casa das Rosas, em São Paulo, um centro cultural focado em poesia. “Sairia algo completamente retrógrado.”
Nascido em Jundiaí em 1927 e formado em Direito pela USP, o poeta foi um dos pais da poesia concreta no Brasil, em parceria com os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, publicando na revista Noigrandes. Segundo Barbosa, Pignatari foi o mais ativo dos poetas concretos no esforço de romper com os “ideais românticos, verborrágicos, da poesia brasileira”. Tomando João Cabral de Melo Neto como um de seus paradigmas, os concretistas, Pignatari em particular, buscaram sistematizar “um entendimento objetivo dos métodos de criação poética”, nas palavras de Barbosa. “É difícil apontar a influência específica de Décio Pignatari sobre poetas atuais”, afirma Secchin, “porque, dentre os concretistas, foi ele quem menos se preocupou em fomentar discípulos.” Mas seu trabalho poético e teórico deixa raízes na maneira como os poetas encaram seu material de trabalho.
“Como professor, Décio formou muita gente. Não só ele ensinava numa faculdade de desenho industrial, como ele mesmo era um ‘designer’ da linguagem”, diz Secchin. Pignatari foi professor da Escola Superior de Desenho Industrial, no Rio, além da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Na PUC, foi um dos responsáveis pela criação do curso de semiótica. “Mas ele não capitalizava as frentes que abria entre os alunos; essa nunca foi uma preocupação dele”, diz Secchin.
Poesia não-verbal
Autor dos livros teóricos Informação, Linguagem, Comunicação, Contracomunicação e Semiótica e Literatura, Pignatari também foi dono de uma agência de publicidade em São Paulo. “É curioso notar como Décio, que vivia cotidianamente imerso no mundo da publicidade, fazia uma guerrilha irônica contra a própria publicidade”, afirma Secchin, que é professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Barbosa comenta a “curiosa tradição” brasileira de poetas que se dedicam à publicidade, citando, antes mesmo de Pignatari, Guilherme de Almeida. “Até hoje, as agências estão cheias de poetas. Mas ninguém pensa que publicidade é feita graças a um dom divino, como acontece com a poesia. Todo mundo sabe que é resultado de muito trabalho.”
O profundo conhecimento teórico em semiótica e linguística fizeram de Pignatari, segundo Secchin, uma figura-chave na transição da poesia entendida como meramente verbal para uma poesia não-verbal, ou, nas palavras usadas pelos próprios poetas concretistas, a poesia como objeto “verbivocovisual”.
Transformar um slogan em peça poética
O concretismo, como estratégia estética, surgiu com furor nos anos 1950, com Pignatari e os irmãos Campos, como superação das limitações de uma poesia que ainda estava presa a uma ambição estritamente lírica. “Foi o primeiro momento, talvez o único, em que a arte brasileira, não só a poesia, esteve à frente de seu tempo no mundo”, diz Barbosa.
“Quando surge uma corrente artística, é preciso assumir uma tática de guerrilha, para estabelecer sua própria diferença”, diz Secchin. “Depois, a nova estética é absorvida. Hoje, nem mesmo aqueles concretistas se consideram mais poetas concretos.”
Absorvido pelas gerações seguintes, o concretismo é visível a partir de suas confluências, como nas intervenções urbanas que se aproveitam de peças publicitárias e sinais de trânsito como ready-made. Um dos poemas mais célebres de Pignatari, o “Beba Coca Cola”, se apropria do slogan da Coca-Cola para transformá-lo em peça poética.
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[Diego Viana, do Valor Econômico]