Zéduardo foi meu chefe de reportagem no Diário de S. Paulo (quando pertencia aos Diários e Emissoras Associados) entre 1969 e 1971. Um chefe vibrante, apaixonado. Daqueles que acompanham o repórter da saída à volta do serviço, olham sobre os ombros o que o repórter escreve, leem o texto, discutem o que foi escrito e dão sugestões posteriores à pauta, que saiu muitas vezes de sua inspiração ou foi por ele aperfeiçoada. Quantos chefes assim há atualmente na imprensa?
Dou só um exemplo de muitos em que essa presença do Zé foi marcante. Saí da redação em busca de Dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, vetado pelo regime militar. Vetado pelo regime, não pelo Zé. Percorri várias casas religiosas atrás do “arcebispo vermelho”. Fui bater no convento dos dominicanos, na rua Caiubi, em Perdizes, já quase três da tarde (e o Zé esperando na redação pelo resultado da longa jornada). Fui até o grande portão de entrada, bati e, ao contrário das outras vezes em que lá estive, quase fui enxotado. Mas senti que a reação do porteiro era estranha.
Ao voltar à discreta Rural Willys do jornal, lambuzada de tinta amarela e vermelha, vi uma inconfundível camionete Veraneio (a “perua” de SP) da Chevrolet. Deve ser a “dura”, a repressão, a Operação Bandeirantes (Oban), pensei.
Como chefe da expedição, disse que ficássemos ali até esclarecer mais duas circunstâncias: o veículo estava na contramão e não tinha placa. Algum longo tempo de espera depois, o portão se abre e de lá sai um grupo de gente. São agentes da polícia, armados de metralhadora, e, no centro, frei Ivo.
Pulo do carro e vou em cima do grupo. Alguns policiais levantam suas armas e mostro minha identificação. Frei Ivo está magro. Apresso-me a perguntar se ele está bem, naquele abordagem inesperada em que temos chance de 100% de fazer uma pergunta idiota. E ele, olhando em torno daquela muralha de brutamontes, me responde com a pergunta devida: “O que é que você acha?”
Bom, virei-me para os policiais, enquanto eles impunham uma caminhada acelerada pela rua de paralelepípedos em declive; me informaram que frei Ivo tinha ido buscar roupas. Segui forçando a conversa até que eles entraram na Veraneio e saíram em velocidade. Voltei para minha própria “viatura” certo de que o fotógrafo tinha feito tudo. Era o grande furo: pela primeira vez via-se um dos frades dominicanos que, presos, levaram Marighela à armadilha montada pelo delegado Fleury e à morte, na Alameda Casa Branca, à noite (fui o primeiro repórter a chegar lá, mas essa é outra história).
Voltei para a redação, faminto e frustrado. O fotógrafo (cujo nome omito caridosamente aqui) não conseguira se desprender do banco em que estava sentado, pálido e em estado de choque. Quando vi a cena contei com o endosso mudo do motorista, que parecia enojado. Mas Zé me recebeu elétrico e disse para mandar bala. Mesmo sem a necessária foto documental, a matéria sairia ainda na edição final do Diário de Notícias, um dos vespertinos do doutor Assis Chateaubriand naquele fim de império.
Saímos juntos da redação para beber e comentar o episódio, bem ilustrativo daqueles tempos. Zé foi um personagem marcante desses tempos, difíceis, aos quais caberiam os versos de Bertolt Brecht sobre os tempos de guerra do nazismo. Seus gestos e palavras me acompanharam para sempre e para sempre ficarão na minha memória, enquanto respeito eu puder ter por profissionais como ele e afeto pelas pessoas vitais, daquelas que outro poeta considerou indispensáveis, como o Zé.
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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]