O mais terrível na vida é escrever sobre a morte de quem conhecemos pela dignidade que teve em vida. É o caso de Ruy Mesquita. Saudade e emoção se entrelaçam nas reminiscências e os lugares-comuns podem brotar naturalmente e com força, pois nada é mais verdadeiro do que um lugar-comum. Não partilhei com ele o grau de intimidade profunda que me uniu a seu irmão mais velho, Júlio de Mesquita Neto, mas nossa amizade foi além da relação profissional e se consolidou, mais do que tudo, no debate em torno de fatos políticos sobre os quais divergíamos. Ele era um mestre em conhecer visões divergentes ou opostas e parecia se nutrir delas para ampliar suas próprias opiniões, sem tornar-se, porém, um polemista ranzinza que discute por discutir.
Nos anos 1970 trabalhei sob sua direta direção como correspondente do jornal na Argentina. Eram os tempos caóticos do governo de Isabelita Perón, depois os terríveis anos iniciais da ditadura do general Videla, e – mesmo já em postos mais altos – ele supervisionava as páginas internacionais, tudo acompanhando em minúcias. Várias vezes telefonou a Buenos Aires, mandando que eu ampliasse tal ou qual informação e fosse “desalmadamente minucioso” porque, depois, ele ia rebater tudo num editorial crítico. O editorial internacional era dele, os demais, de Júlio Neto. O jornal devia levar o leitor a raciocinar e decidir e, por isso, exercia uma função crítica em tudo, principalmente no que publicava.
Ao ser um exilado político, proibido de voltar ao Brasil, eu assinava com o pseudônimo de Júlio Delgado. Na edição de 7 de dezembro de 1976, porém, por sugestão do doutor Ruy, meu verdadeiro nome assinou a longa informação sobre a morte do ex-presidente João Goulart na Argentina. O jornal fora acérrimo crítico do governo de Jango, mas o editorial que Ruy e Júlio Neto elaboraram a quatro mãos foi respeitoso e equânime. Tempos depois, em 1977 (quando O Estado liderou a campanha para me libertar da prisão no Uruguai), Ruy Mesquita ainda frequentava o Clubinho, um fechado centro de reuniões de paulistanos tradicionais e, lá, dois amigos – Henrique Turner e Bartolomeu Barbosa – sugeriram que telefonasse ao ministro da Justiça para o governo Geisel interessar-se por minha libertação.
– Não adiantará. O Armando Falcão é meu desafeto pessoal! –, respondeu ele. Em seguida, entendeu que, exatamente por isso, o gesto teria peso e, dali mesmo, telefonou a Brasília. (O ministro se dizia “injuriado e agredido” porque ele dissera a jornais dos EUA que venderia por mil dólares suas ações no jornal, pois a censura da ditadura no Brasil era “tão degradante que a imprensa não valia nada”). O diálogo foi rápido e lacônico, mas, dias após, o cônsul brasileiro me visitou na prisão em Montevidéu.
Retalhos esparsos
Ao voltar ao Brasil com a anistia, fui editorialista do jornal e o doutor Ruy me levou a debates minuciosos sempre que substituía o irmão na coordenação dos editoriais. Tínhamos similar passado político, princípios idênticos e, quase sempre, opiniões diferentes, mas o debate nos aproximava. Ele fora da Esquerda Democrática na redemocratização de 1945 e admirara a visão social-libertária da Revolução Cubana em seus inícios. Estivera em Cuba em 1959, quando Fidel Castro parecia “o caminho independente e autônomo” antes de submeter-se aos soviéticos.
Durante anos, sua foto com o jovem Raúl Castro, em Havana, adornou seu gabinete de diretor do jornal.
Tudo isso são pequenos retalhos a mostrar a profunda e coerente tolerância intelectual do doutor Ruy, apanágio histórico dos Mesquitas no jornalismo, mas que nesses tempos de facciosismo interesseiro soa a exótico numa sociedade cada vez mais inerte ante a fraude, o descalabro e o engodo da política.
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Flávio Tavares é autor de Memórias do esquecimento e O dia em que Getúlio matou Allende, ambos Prêmio Jabuti de Literatura