Enquanto ia para a missa do dr. Ruy, como todos o chamavam, pensava na notícia que tinha acabado de ler, a morte de Roberto Civita. A mídia brasileira perdeu duas figuras máximas em sete dias. Trabalhei com Roberto, que tinha um ano menos do que eu. Nunca trabalhei com o dr. Ruy, apesar da vontade. Cada Mesquita teve seu papel, sua importância na imprensa, porém o dr. Ruy acabou sendo um mito, principalmente para nós jovens.
Por ser Mesquita, um clã que comandava o jornal mais poderoso do País, fundar o Jornal da Tarde, afrontar a censura e a ditadura militar, defender seus funcionários, mostrou sua coragem e o lado em que estava. Dezenas de artigos de pessoas que conviveram com o dr. Ruy revelaram facetas as mais diversas. Até Xico Graziano mostrou o homem ligado à terra.
Para nós, de fora, o dr. Ruy era inacessível, inalcançável. Criavam-se histórias em torno dele. Lembro-me que nas vezes em que tentei entrar para o Jornal da Tarde, vinham barreiras, sublinhadas pelo comentário: “Você foi da Última Hora, jornal que defendeu Getúlio e Jango, não vai entrar aqui”. Depois, eram raras as matérias sobre livros meus; quase nada.
Indagava, me respondiam: “O dr. Ruy te acha comunista”. Eu, comunista? Se estar perto de Luís Carlos Prestes uma vez na vida, na casa do Aldo Lins e Silva, me fazia comunista, então…
Os anos passaram, fiz minha vida. Aliás, estou fazendo, dia a dia. Certa vez, precisei fazer uma reportagem sobre o Hotel Hyatt para a revista Vogue, que eu dirigia. Fui almoçar no restaurante francês Eau French Grill (na época não tinha esse aposto, french grill). Sentei-me, olhei para os lados, havia pouca gente. Vizinho à minha mesa estava o dr. Ruy Mesquita e dona Laura Maria. Levantei-me, me aproximei, eles ainda tomavam a água, esperavam ser atendidos, detesto incomodar. Apresentei-me, dr. Ruy estendeu a mão: “Permita-me não levantar”. Sorriu, cumprimentei dona Laura. “Sei quem você é”, disse ele. “Quando entrou, disse à minha mulher quem você é, ela te lê”. E ela: “É a primeira coisa que busco, às sextas-feiras”. Dr. Ruy: “É um prazer tê-lo entre nós”.
Mil imagens passaram pela minha cabeça ante o sorriso cordial, amistoso. Onde tinham nascido todas aquelas coisas a respeito dele? As histórias que se criam em torno de certos personagens. Quem cria e por que razão? Ali mudou a impressão que eu tinha de um dr. Ruy irascível com adversários. Imaginem, eu adversário dele? Ousadia. Aquele foi meu único encontro com esse personagem de nossa cidade, da nossa história, da trajetória da imprensa. Um momento simples, quase prosaico, mas feliz para mim. O “outro” dr. Ruy, afável, cordial. Como os que trabalharam com ele mostraram em variados artigos ao longo da semana passada.
Labirintos do crescimento
Quanto a Roberto Civita, tivemos convivência próxima por muitos anos. Na Abril, uns o chamavam de Robert, anos atrás, por ter recém-chegado dos Estados Unidos onde fez universidade. Outros por doutor Roberto. Comecei na Rua João Adolfo, na revista Claudia, mas só vi Roberto pela primeira vez na Marginal do Tietê, para onde nos mudamos em 1968. Ele ficava no sexto andar, na cúpula, reduto dos vips, ao lado de VC. Descia ao quarto andar onde estavam as femininas e era risonho e afetuoso, o oposto de seu irmão que, hoje posso confessar, quase todos jornalistas detestavam.
Certa vez, numa convenção em Serra Negra, reunidos comercial, diretores e redatores chefes (o termo editor ainda não se usava), ele surpreendeu nos dando um conselho: “Façam tudo para ocupar o cargo do seu superior”. Realista, mostrava que se devia usar talento e competência para fazer melhor do que o outro. Ele fez a Abril crescer e diversificar depois da morte do pai. Era um homem inquieto, exigente, duro às vezes. Lembro-me que o arquivo da Abril, chamado de Dedoc, era menina de seus olhos; ele sabia que ali estava gente de esquerda, gente brava, resistente. Sabia que por meio do Dedoc documentos sobre a ditadura, as torturas nas prisões, as mortes, chegavam e escoavam para o estrangeiro por canais jamais revelados, indo para a mídia internacional. Com documentos ali recebidos escrevi capítulos do meu romance Zero.
Uma vez, ao saber que eu tinha pedido demissão da Claudia para ir fazer a revista Planeta com Luis Carta, ele me chamou à sua sala: “Quanto a mais estão te pagando?”. Respondi: “Dois mil cruzeiros a menos do que ganho aqui”. Ficou assombrado: “Então, por que vai?” E eu: “Para mudar, fazer uma coisa nova, excitante. Para sair da burocracia que emperra, das muitas assinaturas em requisições, dos muitos chefes acima de mim, dos muitos memorandos que recebo a cada número que sai”. Roberto me olhou, estendeu a mão: “Obrigado. Tem labirintos que se criam com o crescimento. Preciso ver muita coisa, antes que outros partam. Faça sua vida, a porta está aberta”.
Décadas mais tarde, já na Marginal do Rio Pinheiros, quando foram comemorados não me lembro se os 60 anos do Roberto, fui convidado ao almoço e me pediram para falar. Um dos raros de fora chamados. Sei que gostava de mim. Só nos veremos agora do outro lado, se há um outro lado.
******
Ignácio de Loyola Brandão é jornalista e escritor, colunista do Estado de S.Paulo