Saiu em branco o primeiro editorial da página A3, na edição do dia 22 de maio do Estado de S.Paulo. Se você viu, há de se lembrar. Ou melhor, se você viu, jamais esquecerá, tamanho o choque visual daquela clareira sem letras. Se você não viu, por favor, vá atrás. Não deixe de encontrar e contemplar aquela “nota 1” – como é chamado, no jargão interno do Estadão, o principal editorial do dia – sem título, sem sílabas, sem nada. Nada, apenas o ex-libris ao centro. A experiência estética é única. Se existe uma aura em jornais – esses calhamaços que ainda servem para forrar o assoalho de apartamentos em reforma, para esquentar as calçadas onde crackeiros passam a noite e para acender churrasqueiras no fim de semana –, essa aura pode ser vista a olho nu na página A3 de 22 de maio.
Na véspera, Ruy Mesquita, aos 88 anos, morrera num hospital em São Paulo. Em outros espaços editoriais, o jornal daquele dia cuidou de noticiar o falecimento. Um caderno especial trouxe artigos diversos – e bons – sobre a biografia do dr. Ruy, como o tratavam na redação. Quanto à página A3, essa preferiu emudecer, numa tirada gráfica de rara inspiração. Ruy Mesquita cuidava pessoalmente dessa página, desde a pauta até a edição dos editoriais. Sob sua orientação a página 3 se firmou como uma das mais estáveis instituições da nossa imprensa. Pode-se dizer que há algumas décadas ela faz as vezes de coluna vertebral da opinião pública brasileira, com textos que informam e debatem. Concorde-se ou não com as teses que sustentam, impõem respeitabilidade e reflexão. Não há como ficar indiferente. Por tudo isso, e por mais do que isso, a falta de Ruy Mesquita era assunto obrigatório no Estadão, mas, na página que ele fazia, não poderia ser simbolizada de outra forma que não fosse a explícita falta de simbolização. Bastou o silêncio.
Um silêncio desse tipo perturba. Tanto que na ditadura militar, quando a censura baixou no Jornal da Tarde e no Estado, a polícia não autorizava que espaços em branco, silenciosos, ocupassem o lugar das reportagens podadas pela tesoura do governo. O vazio era proibido. Era subversivo. Este jornal inventou um jeito de contornar a mordaça com uma solução quase tão desestabilizadora quanto o próprio silêncio: em vez de enfiar bobagens chapa-branca nas clareiras deixadas pelos textos interditados, passou a publicar trechos de Os Lusíadas e receitas de bolo. Denunciou o arbítrio, mas não tinha direito ao silêncio.
Agora, tem. E o primeiro significado estético da nota 1 em branco na edição de 22 de maio é reafirmar o direito ao silêncio. Mas esse não é nem de longe o significado mais forte. O papel despido, com suas nervuras vegetais à mostra, em nu frontal, escancara um significado mais intenso e mais central.
História centenária
Essa coisa corpórea e estirada, o papel-jornal, tem sido a matéria sobre a qual as nações modernas forjaram sua identidade. Foi por meio de artigos de jornal que os federalistas ganharam a concordância dos cidadãos americanos. Foi também nos diários que os espaços públicos nacionais da Europa se traduziram em comunidades coesas, estruturadas em letras pretas sobre fundo branco. O papel cru que pudemos ver graças às letras ausentes no alto da página A3 é o mesmo papel que constituiu, desde o final do século 18 até pelo menos a metade do século 20, o que podemos definir como a instância da palavra impressa (só muito recentemente substituída, em parte, pela instância da imagem ao vivo). Sem a instância da palavra impressa as sociedades democráticas simplesmente não existiriam.
Portanto, se você não viu e quer ver essa instância cara a cara, procure um exemplar do jornal do dia 22. Existe ali, sim, pelo menos um resíduo de aura. Isso é complicado de explicar, embora dê para sentir (ou pressentir).
“O que é a aura?”, perguntou-se certa vez Walter Benjamin, para responder logo em seguida: “É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”. Olhe, então, para o papel sem tinta, emoldurado pelas bordas da paginação e ancorado pelo ex-libris. A “coisa distante” que você pressentirá serão as bobinas escorrendo pelas rotativas de imprensa. Esses rios de celulose são como o rio de Heráclito, em cujas águas ninguém nunca se banha duas vezes, pois, embora o rio seja o mesmo, as águas são sempre novas. Nesses rios de papel vão banhar-se as letras que também se renovam diariamente, de tal forma que um jornal nunca é igual ao do dia anterior, embora seja sempre o mesmo.
É mais ou menos essa a “coisa distante” que se insinua ali, naquele vazio, ainda que exista outra coisa, mais distante ainda, que também possa ser vislumbrada. A coisa mais distante ainda nós a chamamos de História. Por meio da superfície grosseira do papel, aqui, nesta página mesmo, debaixo das letras desta linha, você entra em contato com as bobinas escorrendo em alta velocidade. Aí, por trás das corredeiras de celulose, você pode intuir o próprio curso da própria História. Os jornais compuseram diariamente, ao longo de pelo menos dois séculos, o primeiro rascunho da História e, embora esta não seja um fluxo retilíneo, linear e constante, a função dos jornalistas é tentar fixá-la numa cronologia ordenada, embora vã.
Assim fluem as faixas líquidas de ranhuras vegetais devoradas pelo furor das rotativas. A “coisa distante”, enfim, é uma história que fica além do próprio papel, além de qualquer árvore, além das florestas e da natureza. Eis como vemos “a coisa distante”, “por mais próxima que esteja” de nós esta folha de papel aqui (ou a folha nua do dia 22 de maio).
Uma história centenária passou pela página 3, aí do lado, sem que a gente se desse conta. Então vem o vazio e vem também uma pergunta: para onde vai correr o tempo agora?
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Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM