Adeus. Eu nunca entendi bem essa palavra. O dicionário Lello elucida: “Deus vá na vossa companhia”. Eu penso que adeus significa “para Deus”. Dr. Ruy foi para Deus. Sua presença física não nos pertence mais. O Lello também diz que “adeus” significa fim. Não concordo. De dr. Ruy fica sua lembrança preenchendo todos os espaços vazios que deixou.
Ele gostava de um bom dicionário. Tinha três em sua mesa. Dizia ser preciso dominar o idioma porque o vocábulo era o instrumento do pensamento. Nos textos que criava ou corrigia, a preocupação máxima era com a elegância, a objetividade e a exatidão da palavra interpretando suas ideias. Ele recebeu insistentes convites das Academias de Letras para pertencer ao rol de imortais, que nunca aceitou, apesar de lhe soarem honrosos. Agradecia, mas nunca chamou para si homenagens, diplomas, medalhas ou reconhecimentos.
Em seu 85º aniversário, não se furtou ao afeto que lhe dedicamos numa reunião surpresa no salão nobre da empresa, que contou com a presença de sua esposa, dona Laurita, seus filhos, alguns netos, diletos amigos, estadistas, companheiros e colaboradores do antigo JT e do Estado e o corpo editorial do jornal, além de ter recebido um delicado cartão pintado e assinado por crianças da LBV, que o deixou encantado. Foi surpreendido com a apresentação de retrospectiva fotográfica com passagens de sua história, a que assistiu comovido. Foi saudado em nome de todos com palavras amigas do companheiro Robert Eugène Appy, hoje também falecido. Em agradecimento, dr. Ruy nos disse: “Aos 85 anos, percebi que ainda não perdi a capacidade de me emocionar. Muito obrigado”.
Olhar marcante
Em sua sala, no 6º andar da empresa, havia imensa mesa de trabalho, invariavelmente ocupada por montes de jornais, recortes, súmulas dos principais jornais do exterior ou por editoriais. Ele ainda fazia, à mão, num recorte de papel que carregava no bolso do paletó, a anotação de vários fatos do noticiário que discutiria com quem de direito. Ia inutilizando cada menção à medida que cumpria a tarefa. Enviava xerox das súmulas internacionais também a quem de direito, com comentários pessoais, escritos à beira da página, por vezes irônicos ou humorados, mas sempre com toque de mestre, indicando o melhor para publicar.
E havia os sofás, onde se acomodaram tantas pessoas públicas que o procuravam. Preocupado com os rumos do ensino do jornalismo, recebeu inúmeros estudantes de universidades do País. Num desses encontros, em 2005, 25 jovens se dispersaram pelos sofás e o carpete, sacando seus gravadores, com dr. Ruy à frente. Tentei interromper para avisar dos editoriais à espera. Sem sucesso. A reunião durou três horas. Por carta, agradeceram “a gentileza de proporcionar o fascinante e agradável encontro”. Recentemente, quando questionado sobre o fim do jornalismo impresso, ele respondia que “sobreviverá aquele que fizer a diferença”. Para dr. Ruy o jornalismo era uma missão.
Certa vez, um assinante do jornal manifestou o desejo de conhecê-lo. Foi recebido festejadamente por dr. Ruy. Para agradecer, o visitante enviou carta assinada por todos os familiares, e ele comentou comigo: “Às vezes, por tão pouco, é possível fazer uma pessoa feliz”. Invariavelmente, atendia a pedidos dos menos favorecidos, de encaminhamento para obtenção de bolsas de estudo a tratamentos em hospitais, e ajudava de seu próprio bolso os funcionários mais necessitados que o procuravam.
Nas paredes de sua sala havia muitos quadros. Entre eles, em especial, a primeira página do suplemento Cultura dedicado a seu pai, Julio de Mesquita Filho, com cujo convívio dizia “ter aprendido tudo para sua formação profissional”. A estante de livros estava abarrotada. Eram sempre bem-vindos e pedia para comprar outros tantos. Dizia-me que “não sabia onde arranjar anos suficientes para ler todos”. Amava a poesia de Fernando Pessoa. O último livro que leu, Breviário do Brasil (editora Babel), leu-o em dois dias. Tratava de seu assunto predileto.
Para produzir, lendo ou escrevendo, ouvia CDs de música clássica e havia também uma TV, sintonizada sempre que transmitia algo memorável. Assistiu a todas as sessões do julgamento do mensalão e acompanhava os jogos de futebol da Seleção, como torcedor atento e exigente.
Diariamente, de segunda a sexta e também nos feriados, os editoriais já começavam em sua casa, às 5 horas, quando chegavam as primeiras edições do Estado. Após sua leitura, telefonava para o Tonico (Antonio Carlos Pereira) para discutir a prévia dos principais assuntos do dia. Assim que chegava a sua sala, reunia os editorialistas para definirem os editoriais do dia, sob sua supervisão e capitaneados pelo Tonico. Corrigia, se houvesse modificações, retornava, vinha a prova “limpa” e, finalmente, ia à publicação.
Há três anos suas dores e o enfraquecimento das pernas o levaram à utilização da cadeira de rodas, levada por dois fiéis escudeiros, Edson e Ademir, do carro para a sala e vice-versa. Aproveitava para ver o movimento dos corredores, com levas de novos funcionários, que não conhecia, mas cumprimentava. Antes, com toda afetuosidade, aproximava-se da porta aberta de minha sala (em frente à dele) e despedia-se com um beijo. Sua aparência física era de grande cansaço, estampado no olhar marcante de quem, mesmo assim, amava o que fazia. Sua força interior era surpreendente. Ao lhe fazer menção dela, certa vez, disse-me, com seu habitual senso de humor, que preferia a exterior.
À porta
Generoso, compenetrado, sereno, tinha, sim, suscetibilidades agravadas em seus últimos anos de vida pelos inúmeros revezes que as circunstâncias lhe trouxeram. Nesses momentos, procurava lhe incutir alento, que me agradecia com um “sim, senhora” acompanhado do sorriso mais grato e confiante que conheci. Foram 42 anos de histórias e acontecimentos compartilhados. Sempre respeitou e prestigiou minha família e o trabalho que desenvolvi ao lado dele.
Em sua última ida ao jornal, ao sair, o cumprimento foi diferente. Deveria estar pressentindo o destino à porta e me disse, carregado de emoção: “Tchau, querida”.
Adeus, querido mestre e amigo. Sei que você já está com Ele.
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Maria de Lourdes M. Huertas foi secretária de Ruy Mesquita (1971-2013)