Nos anos 1970 e 80, o termo ‘celebridade’ ainda não estava em voga, mas ninguém poderia ser reconhecido como tal se não ganhasse linhas elogiosas na coluna que o jornalista Telmo Martino publicava no Jornal da Tarde. Em outras palavras, ninguém era ninguém em São Paulo se não fosse lembrado por ele.
“Chocho quando elogiava, Telmo corroía ao fustigar suas antipatias”, comentou Humberto Werneck, em um texto publicado no Estado de S.Paulo em 2011 [ver íntegra abaixo]. “A coluna, que levava seu nome, parecia um carrossel no qual giravam umas poucas, obsessivas personagens, talvez menos de cem, às quais se grudavam sempre os mesmos venenos”, continua Werneck, que conviveu na redação do JT com Martino, morto na madrugada de terça, no Rio, aos 82 anos, de complicações decorrentes de uma pneumonia – estava internado desde 22 de agosto.
E era um veneno capaz de provocar choro e intenções de assassinato da parte dos citados, às terças, quintas e sábados, quando era publicada a coluna, que, de uma forma geral, despertava gargalhadas do leitor. Afinal, em uma época em que as colunas sociais se limitavam a fazer elogios de casamentos e batizados de bacanas, Telmo Martino não apenas apresentava uma crônica da vida cultural e social de São Paulo como também sintonizava a cidade com Nova York, Paris, Rio e, claro, Londres, fontes de informações que vinham embrulhadas em um fino humor.
“As pessoas liam Telmo e saíam repetindo seus epítetos, piches e definições”, observou Ruy Castro, em uma crônica publicada pelo Estado em 2004, quando foi lançado um livro, Serpente Encantadora (Planeta), com seleção de suas melhores crônicas. “Telmo apostava que o leitor sabia tanto quanto ele e não se preocupava em ficar explicando. O fato de ter sido um constante sucesso durante dez anos é a prova de que tinha leitores de alto nível em quantidade suficiente para continuar sendo publicado.”
Humberto Werneck considerava que o melhor da escrita de Telmo Martino eram as “turmas” que ele delimitou e nomeou. “Numa paisagem em que pululavam bichos-grilos, rótulos como ‘barba-e-bolsa’ e ‘poncho-e-conga’ dispensavam explicação. Uma colônia italiana endinheirada e melômana constituía o pessoal do ‘Scala-e-escarola’. Paulo Maluf e outros descendentes de libaneses formavam o bando do ‘quibe-e-quilate’, a um tempo glutão e exibido, e assim por diante.”
Martino foi colega de Paulo Francis e Ivan Lessa, formando um trio de jornalistas cultos, críticos e sofisticados. Antes de chegar ao JT, em 1971, passou pelas revistas Senhor eDiners e pelos jornais Última Hora e Correio da Manhã. Criou inimizades, recebeu ameaças e até um chute no traseiro, desferido pelo poeta Mario Chamie.
Frases afiadas
>> Fernando Henrique Cardoso era, para Telmo Martino, o “sénateur mulâtre” ou o “parvenu do palanque”.
>> Patrício Bisso, artista, “uma mistura de Betty Boop, Bette Davis, Betty Grable, Betty Ford e Lady Macbeth”.
>> Franco Montoro, ex-governador, era “o último fã de Zasu Pitts”.
>> Elba Ramalho, “a frajola do flagelo”.
>> Cecília Meireles, “a poetisa à prova de Fagner”.
>> Betty Milan, “a La Goulue do Lacan-can-can”.
>> Othon Bastos, “o ator que poderia ter sido Johnny Carson, mas preferiu ser Ferreira Neto”.
>> A revista ‘Nova’ era definida como “o Kama-Sutra das estenodatilógrafas”.
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O carrossel da serpente
Humberto Werneck # texto publicado no Estado de S.Paulo em 13/11/2011
Era o primeiro dia do colunista carioca Telmo Martino no Jornal da Tarde, aí por 1972, e motivos não lhe faltavam para estar pouco à vontade. Acabara de chegar a São Paulo, onde praticamente não tinha conhecidos; entrado nos 40 anos de idade, fora cair numa redação onde o próprio editor-chefe, Murilo Felisberto, mal passava dos 30; e enfrentava o estresse de qualquer primeiro dia de trabalho, em que você, ao sentar-se numa cadeira, tem a sensação de estar ocupando assento alheio. Foi para deixar o forasteiro à vontade que um editor o instalou a seu lado, na mesa onde diagramava uma página. Já de si afetado, o moço caprichava, bamboleando os longos cabelos louros, apenas um dos recursos de que lançou mão na tentativa de impressionar o recém-chegado. Como nenhum deles parecesse funcionar, sacou do nada esta declaração:
– Sabe, Telmo, eu gostaria mesmo é de ser uma puta internacional…
Ao que o outro sugeriu:
– Uê, viaja!
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A timidez não impediu que Telmo logo se tornasse uma sensação no mundinho jornalístico-artístico-social da Pauliceia. Por lhe faltar uma boa introdução, o livro Serpente encantadora, coletânea de textos de sua autoria publicada em 2004, não dá a medida do furor ateado pela prosa vitriólica do colunista – que no convívio, curiosamente, era mais encantador do que ofídico. Chocho quando elogiava, corroía ao fustigar suas antipatias. A coluna, que levava o seu nome, parecia um carrossel no qual giravam umas poucas, obsessivas personagens, talvez menos de cem, às quais se grudavam sempre os mesmos venenos. Fernando Henrique Cardoso, que admitira ter “um pé na cozinha”, ia ao pelourinho como o “sénateur mulâtre”. Caetano Veloso, como “o Mallarmé do afoxé, o Cocteau do agogô, o Rimbaud do bongô”. Paraibana do interior, Elba Ramalho era “a vingança do agreste” ou “a frajola do flagelo”.
O melhor de Telmo, porém, foram as “turmas” que ele delimitou e nomeou. Numa paisagem em que pululavam bichos-grilos, rótulos como “barba-e-bolsa” e “poncho-e-conga” dispensavam explicação. Uma colônia italiana endinheirada e melômana constituía o pessoal do “Scala-e-escarola”. Paulo Maluf e outros descendentes de libaneses formavam o bando do “quibe-e-quilate”, a um tempo glutão e exibido, e assim por diante.
Chega a espantar que Telmo Martino, em seus muitos anos de São Paulo, tenha levado apenas um troco em público – um chute no traseiro, desferido numa festa pelo poeta Mario Chamie.
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Até mesmo com um colega de redação Telmo Martino tomou assinatura: o repórter de artes Olney Krüse, também conhecido pelas exposições de objetos kitsch que promovia. Ele próprio, aliás, parecia saído de uma de suas mostras, pois usava adereços como um anel cuja pedra era um teratológico olho de vidro, e cabelos que, ralos no alto e alvoroçados nas laterais, autorizavam pensar no palhaço Bozo. Já não me lembro qual das estocadas de Telmo Martino empurrou um dia para o ataque aquele doce camarada. O fato é que num fim de tarde Olney irrompeu na redação e, com inusual passo duro, tirou uma reta até a mesa do colunista, onde por uns segundos esteve a mirá-lo com uma ferocidade de que nem seu esbugalhado olho-anel seria capaz. Telmo já se preparara para uma bofetada, na melhor das hipóteses, quando Olney, num gesto rápido, se apossou de seus óculos, jogou-os no chão e os pisoteou, crash, crash, crash, antes de fazer meia volta e, triunfante, bater em retirada.
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Numa noite, houve um princípio de incêndio no Edifício Louvre, na Avenida São Luís, onde moravam dois colegas de Jornal da Tarde – Telmo Martino e o não menos carioca Claudio Bojunga. Nossa redação ficava ali perto e saí para ver o que se passava. Na calçada do Louvre, encontrei dezenas de apreensivos condôminos, sobraçando objetos de estimação ou valor pinçados no sufoco do salve-o-que-puder. Bojunga e a mulher, Martine, desceram com um faqueiro e o cachorrinho Empada. Quanto ao Telmo, entre as preciosidades que atravancavam seu apartamento de solteirão viajado, escolheu salvar das chamas… um cinzeiro – sim, um cinzeiro sem pedigree, no qual, em pé na calçada, indiferente ao nervosismo que crepitava em torno, ele ia batendo as cinzas de seu cigarro importado.
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Ubiratan Brasil, do Estado de S.Paulo