Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O círculo da vida se fecha pacificamente

Nelson Mandela não se chamava Nelson, mas Rolihlahla, que significa na língua cossa “arrancar um ramo” ou “provocador de distúrbios”. Se adotou o nome Nelson foi que porque naquela época (Mandela nasceu em julho de 1918, em pleno inverno austral) uma criança negra, quando entrava na escola, era rebatizada pelo seu mestre, que lhe dava um nome mais conveniente, numa língua universal. Ele teve sorte: foi escolhido para ele o nome de um guerreiro vitorioso: Nelson, o almirante britânico que derrotou a frota de Napoleão no Cabo Trafalgar, em Gibraltar.

Nelson era filho de um rei que tinha 4 mulheres, 13 filhos e pertencia à família real Thembu. Esse rei, porém, era obstinado e as autoridades coloniais o mandaram para o exílio no vilarejo de Qunu. Nelson teve uma infância real, mas não luxuosa. Guardava os carneiros e as vacas, colhia o mel selvagem. Bebia o leite quente tirado da vaca, nadava no frescor dos riachos. Em 1927, seu pai morreu. “Sua morte mudou toda a minha vida”, diria mais tarde.

A infância foi comum, de uma criança negra, na tradição da tribo cossa. Viveu a adolescência e tornou-se homem. Passou por uma circuncisão. “Um cossa não circuncidado é uma contradição, porque continua sendo uma criança, não um homem.” Mas Nelson não seguiu os hábitos da tribo. Enquanto seu pai jamais frequentou a escola, Mandela foi escolarizado. Aprendeu inglês, história e geografia.

Nelson foi uma criança viva, mas seus camaradas o chamavam de “tatomkhulu” (avô), pois, às vezes, ele parecia um idoso – mais tarde, quando reapareceria após 27 anos de prisão, sua juventude iria nos espantar. Criança dotada, trabalhadora, frequentou várias escolas até entrar no liceu de Fort Beaufort, em 1937. Sempre foi um menino sensato, obediente. Não se observava ainda nada do revoltado irredutível que ele se tornaria. “Aspiramos nos tornar ingleses negros”, confessaria depois. “Éramos ensinados e estávamos convencidos de que o melhor governo era o britânico e os melhores homens, os ingleses.”

Em 1938, entrou na Universidade de Fort Hare, a “Cambridge dos negros”. O curso o transformou. Nelson foi iniciado no refinamento intelectual mais extremo do Ocidente. Ao mesmo tempo, tinha ódio de todas as segregações étnicas. Foi o despertar. Enquanto alguns escolheram o caminho do marxismo, ele adotou Gandhi como modelo, que aliás começou sua campanha da não violência quando era advogado na África do Sul.

Cidade natal

É difícil, hoje, termos a noção exata dos abusos cometidos contra os negros no país. Embora o apartheid tenha sido declarado somente em 1948, o negro já era estigmatizado, confinado, reduzido a um ser sub-humano. E o que é um negro? Ele nasce num hospital para negros, toma um ônibus só para negros. Vive num bairro negro. Os poucos que vão à escola, frequentam uma escola para negros. Mais tarde, ocupará um emprego subalterno, reservado para os negros. A polícia pode exigir dele, dia e noite, o seu “passe” e colocá-lo na prisão, se não o tiver. Um racismo nauseabundo.

Expulso da universidade, Mandela foi para Johannesburgo, onde trabalhou como vigilante numa mina de ouro. Durou uma noite. No dia seguinte, foi embora. Encontrou outro emprego em um escritório de advocacia. O patrão, um sujeito risonho que amava mulheres, boxe, canto e queria casá-lo de qualquer maneira. Ele se recusou e novamente fugiu. Nelson se casaria com uma das suas amantes, Evelyn Mase, com quem teria dois filhos. Em 1944, ele aderiu ao Congresso Nacional Africano (CNA).

Em 1948, o Partido Nacional triunfou. Daniel Malan chegou ao poder e proclamou o apartheid. Mandela conduziu uma campanha de desobediência civil que culminou, em 12 de abril de 1952, com uma passeata de 100 mil pessoas – 8,5 mil foram presas. Entre elas, Nelson. Foi quando Mandela começou a se aproximar dos comunistas. Comprou livros de Marx, Lenin, Engels, Stalin e Mao Tsé-tung. “O Manifesto do Partido Comunista me estimulou, O Capital me consumiu”, disse. Nesse meio tempo, separou-se da esposa para se casar com a inquietante Winnie. “Para cada bôer, uma bala”, afirmava ela. “Com nossas caixas de fósforos e nossos lenços, libertaremos o país.”

Na África do Sul, era a fase da tragédia. Em 21 de março de 1960, ocorre o Massacre de Sharpeville. Os negros protestam contra a extensão para as mulheres do “passaporte interno”. Sessenta policiais atiram contra a multidão e matam 69 pessoas. O CNA é proibido. A carnificina é o ponto sem volta. Mandela compreendeu que o caminho da não violência era em vão e se converteu à guerra. Lançou uma greve geral, pregou a luta armada e recomendou a sabotagem.

Um pouco mais tarde, depois de um longo processo, ele e 11 de seus amigos foram encarcerados. Eles conseguiram escapar da pena de morte, mas foram condenados à prisão perpétua. Mandela permaneceu 27 anos no cárcere. Inicialmente ficou confinado em Robben Island, onde fez trabalhos forçados numa pedreira. Depois, foi colocado para recolher excrementos de pássaros para adubo.

Os tiranos queriam se livrar dele e conceberam um plano. Um agente secreto, Gordon Winter, se encarregaria de fazê-lo fugir de lá, em 1969. A polícia organizaria uma perseguição e uma bala perdida mataria Mandela. O complô foi descoberto pelo serviço de inteligência britânico. Essa era a tática do poder. Esse homem intratável deveria ser silenciado. Como não foi possível matá-lo, ele seria sepultado na cadeia, esperando-se que a solidão fizesse desaparecer esse ícone aterrador e calasse a voz doce e potente. No entanto, os tiranos são imbecis e conseguiram o efeito inverso.

Nelson Mandela tornou-se o prisioneiro mais célebre do mundo. Um grito se ouvia em todos os continentes: “Libertem Mandela”. Em junho de 1988, realizou-se um concerto pelos 70 anos de Mandela que foi visto por 600 milhões de telespectadores em 67 países. Nos ouvidos dos brutos de Pretória, o show provocou um barulho infernal. O presidente Pieter Botha ofereceu a liberdade, desde que ele renunciasse à ação. Ele recusou. “Só os homens livres podem negociar”, respondeu Mandela.

O governo branco estava encurralado por esse homem, esse prisioneiro que o tinha nas mãos. Botha foi substituído por um outro bôer, Frederik de Klerk, menos obtuso. Em 11 de fevereiro de 1990, Mandela foi libertado e o mundo ficou maravilhado. Esperava-se ver um velho esgotado ou um homem amargo, duro, querendo vingança, mas o que vimos foi alguém doce e sorridente, alegre, engraçado, esclarecido. “Lancem ao mar suas facas, seus fuzis, seus machados”, pediu ao seus partidários. Quatro anos depois, foi eleito presidente da África do Sul.

É raro a história nos oferecer narrativas tão fascinantes e de grande moral. Um homem justo, que com a força da sua generosidade fez tombar uma das fortalezas mais sólidas da época. Então, uma nova prova: Mandela assume um país onde a maioria de negros foi tratada durante séculos como excremento. Tudo se combinava para um ciclo de vingança, mas nada disso ocorreu. Com seu carisma, ele transformou a África do Sul na nação arco-íris.

Mandela aposentou-se em junho de 1999, mas interveio em várias ocasiões. Por exemplo, para criticar a guerra no Iraque e acusar George W. Bush de desatar um novo holocausto. Ocupou-se do problema da aids, mas já estava cansado e sua voz era cada vez menos ouvida. Quando deixou o poder, prometeu envelhecer em Qunu. “Estou num período da vida que todo homem deveria conhecer, tendo a oportunidade de me retirar para minha cidade natal, encontrar a tranquilidade e repousar.” Uma vida que, como um círculo, se fecha pacificamente.

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Gilles Lapouge é correspondente do Estado de S.Paulo em Paris