Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Celebridade cordial

Políticos, roqueiros, aristocratas, atrizes, atletas, religiosos e potentados de todos os cantos se congraçaram em Johannesburgo. A satisfação deles por estarem lá era tamanha (Obama até tirou um selfie) que a beatificação de Nelson Mandela ficou em segundo plano. Comemoravam a conciliação, como não cansaram de repetir. Festejavam também o triunfo das imagens sobre a realidade, do símbolo sobre a substância, da celebridade sobre o anonimato. A unanimidade só não foi absoluta porque o povo cismou de vaiar justamente o herdeiro político de Mandela, o presidente Jacob Zuma.

Oportunista, o Partido Comunista da África do Sul reconheceu o que sempre desmentiu: Mandela era dirigente do PC quando participou da luta armada e foi condenado à prisão perpétua. Nada demais na militância comunista contra séculos de exploração colonial e décadas de apartheid, regime sustentado urbi et orbi (em 1987, Estados Unidos, Inglaterra e Portugal votaram nas Nações Unidas contra a soltura de Mandela). Mas relembre-se que o PC sul-africano foi tão stalinista quanto o de Cuba e o da Coreia do Norte. O partido se insurgiu contra as denúncias de Kruschev dos crimes de Stalin e apoiou as invasões soviéticas da Hungria e da Tchecoslováquia. Montou campos para encarcerar adversários e usou a tortura como método.

Ao ser preso, Mandela deixou para trás cadernos nos quais copiava, à mão, escritos de Stalin e assemelhados. Numa das anotações, escreveu: “Num governo do PC, a África do Sul se tornará uma terra de leite e mel. Não haverá desemprego, fome nem doença”. O caminho para a utopia era a estatização das grandes empresas, das mineradoras e do sistema bancário. Só assim se obteria justiça social.

Durante 27 anos de cárcere, Mandela não renunciou à luta armada ou a nenhuma das suas ideias. No exterior, seus companheiros organizaram a campanha de boicote às empresas que faziam negócios com o apartheid. Conquistaram uma legitimidade que outro movimento de libertação nacional, o palestino, jamais logrou. Num imenso comício no estádio de Wembley, na Inglaterra, a palavra de ordem “Abaixo o apartheid” foi substituída em 1980 por “Free Mandela”. Ele começava a virar um ícone. Mas só aceitou ser libertado junto com os outros presos políticos, e depois de garantida a liberdade de expressão, organização e de imprensa.

Leite e mel

Ele mudou em 1992. Na sua biografia autorizada, Anthony Sampson conta que Mandela abandonou quaisquer objetivos socialistas no Fórum Econômico de Davos daquele ano. Lá, foi convencido – e pressionado – pelo grande empresariado mundial de que a África do Sul não obteria investimentos, nem empréstimos do FMI, se não abrisse a África do Sul para o capital. Do contrário, o país seria estrangulado. As conversas decisivas, porém, foram com dirigentes dos PCs da China e do Vietnã, que já privatizavam setores inteiros da economia. No pano de fundo de todas as mudanças estava a debacle da União Soviética, um ano antes.

Mandela ajudou então na criação de uma burguesia negra parasitária. Deixou em paz empresas e indivíduos racistas – inclusive policiais que perpetraram massacres. Abandonou o igualitarismo. O balanço do seu governo, e dos que inspirou em seguida, é complexo. Cada eleitor tem direito a seu voto. A república é uma e indivisível. Os negros têm acesso nominal a tudo. O fornecimento de água e energia melhorou, mas os serviços são de péssima qualidade. Foram construídas casas populares.

No entanto, a desigualdade social aumentou, bem como o desemprego, que é da ordem de 25% da força de trabalho. Metade da população vive abaixo da linha de pobreza, recebendo dois dólares por dia. Os brancos ganham em média seis vezes mais que os negros. A violência urbana e a corrupção são endêmicas. Mais de 300 mil pessoas morreram de Aids porque o presidente Mbeki acreditava que o vírus do HIV era invenção dos brancos.

Em não havendo justiça na vida real, sobraram imagens e simbolismo. Mandela convidando seu carcereiro para a cerimônia de posse na presidência. Com camisas feéricas, escolhidas a dedo, tresandando charme em dancinhas de palanque. Aplaudindo a seleção nacional de rúgbi, um esporte branco. Frequentando Bono e Bill Gates. Abraçando, sorrindo e dizendo frases vazias. À frente da Copa. Mesmo morto, patrocinando o aperto de mão entre Raúl Castro e Obama. Mandela, celebridade cordial, é mais uma marca – disputada a tapa pelos herdeiros – que uma política.

Para ser eficaz, uma ideologia deve expressar ou distorcer a realidade. Pode-se dizer que Mandela foi realista. Ou que se conformou à ordem mundial. Ou que traiu o leite e o mel da libertação. Em Johanesburgo, os poderosos desse mundo preferiram chamá-lo de conciliador.

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Mario Sergio Conti é jornalista