Vaia e ovação devem ser as duas únicas palavras do vocabulário humano que qualquer político – independentemente de país, partido, regime, língua ou ideologia – entende. Elas dispensam intérpretes, a mensagem é universal. E o efeito de ambas é instantâneo.
Na vaia a expressão facial do alvo tende a se petrificar, enquanto os ouvidos flamejam e a duração do retumbo nunca parece menor do que uma eternidade. Na ovação espontânea, cada vez mais rara na esfera política de hoje, convém saber dosar a ufania e os agradecimentos – sobretudo se a ovação tiver ocorrido de surpresa, diante de pares que morrerão de inveja.
Tudo isso, e algo mais, pôde ser observado na cerimônia que reuniu mais de 60 chefes de Estado ou de governo no estádio Soccer City de Johannesburgo para o memorial a Nelson Mandela no início da semana.
A estrondosa vaia que desaguou sobre a figura do presidente sul-africano Jacob Zuma das arquibancadas e que pareceu constranger vários dignitários presentes, por ter ofendido o espírito de harmoniosa unanimidade do evento, pode muito bem ser vista sob ótica inversa. A possibilidade de o povo sul-africano vaiar em público e sem medo a autoridade máxima do país, tida como corrupta, representou uma homenagem a Mandela mais significativa do que a que ocorria no palanque oficial. Seria impensável cidadãos sul-africanos da era pré-Mandela acharem que poderiam levantar a voz impunemente contra o presidente da nação – nem mesmo se fossem brancos.
Fora das grades
Quanto à animada ovação que a mesma arquibancada reservou para Barack Obama, e somente para ele, seu antecessor na Casa Branca talvez se sentisse merecedor de pelo menos um aplauso. Nem que fosse um só, camuflado. George W. Bush, também presente ao estádio, tinha motivos para rememorar uma iniciativa sua de 2008 que sempre o orgulhou.
Poucos no Soccer Stadium deviam saber que o nome de Nelson Mandela só foi retirado da lista de terroristas elaborada pelos serviços de segurança americanos em julho de 2008, poucas semanas antes de ele completar 90 anos. Até então, a cada vez que quisesse viajar aos Estados Unidos ou participar de reuniões na ONU, era obrigado a solicitar uma declaração específica de Washington atestando o contrário. O mesmo se aplicava a outros membros do partido African National Congress (ANC).
A emissão dos atestados era tarefa pessoal e intransferível do titular da pasta de Relações Exteriores – na época, Condoleezza Rice, secretária de Estado de George W. Bush, então no seu último ano de governo antes da eleição de Obama. “Não me sinto à vontade redigindo esse tipo de declaração para quem ocupa o mesmo cargo que eu e ainda menos para alguém do porte de Nelson Mandela”, informou Rice ao solicitar a uma comissão do Senado o levantamento das restrições a todo o ANC.
Três meses depois, Bush sancionou a revogação da medida e Nelson Mandela deixou de constar da lista da Homeland Security. Era tempo. Fazia 18 anos desde que saíra como homem livre de Robben Island, 15 desde que recebera o Nobel da Paz e uma década desde que deixara a Presidência do país.
Recado singelo
A julgar pela leitura de suas memórias, a bronca de Mandela com o anticomunismo visceral de Ronald Reagan, responsável pela sua inclusão na fatídica lista nos anos 1980, era menor do que sua aversão pela era Margaret Thatcher. Nos Estados Unidos de Reagan, William Buckley, um dos comentaristas conservadores mais conceituados, opinava nos seguintes termos sobre a libertação do líder negro em 1990: “Ainda chegará o dia em que a soltura de Mandela será comparada à chegada de Lenin à Estação Finlândia em 1917.” Na Inglaterra de Thatcher, porém, o tom era mais direto: “Nelson Mandela deveria ser morto”, declarou um deputado do partido do governo no Parlamento. Quando Mandela declinou um encontro com Thatcher durante uma visita a Londres, outro deputado conservador deixou registrada sua indignação oficial: “Até quando a primeira-ministra vai permitir que esse terrorista preto a ofenda?”
Águas passadas. De retorno aos Estados Unidos a bordo do Air Force One, um presidente (Obama), dois ex-presidentes (Bush e Bill Clinton) e uma possível futura candidata a presidente (Hillary Clinton) tiveram tempo de sobra para talvez pensar em vaias ou aplausos. Ou talvez se entediar durante as 16 horas de voo. Afinal, são gente como a gente. Tanto assim que para matar o tempo Bush sacou o seu iPad e submeteu os companheiros de viagem à exibição dos quadros que anda pintando desde que deixou a Casa Branca.
Talvez fosse um singelo recado para Obama: o poder acaba. […]
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Dorrit Harazim é jornalista