A notícia golpeia e atordoa: Eduardo Coutinho morto a facadas, provavelmente pelo próprio filho. O que fazer diante dessa tragédia, senão silenciar em sinal de respeito ao mistério do mundo?
Sobre o homem que o Brasil perde, há muito, no entanto, para falar. Eduardo Coutinho, nascido em São Paulo, teve suas incursões pelo cinema de ficção. No entanto, é no documentário que se destaca como o mais importante cultor do gênero no País e um dos grandes do mundo.
Difícil dizer qual o ponto alto da carreira de Coutinho, tantos foram eles. Mas uma aposta segura pode ser feita em Cabra Marcado para Morrer, filme que define toda uma época, do início da ditadura até a abertura política.
De fato, Cabra começa como documentário romanceado sobre a morte do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado em 1962. A produção é interrompida com o golpe de 1964 e a família Teixeira, que dela participava, cai na clandestinidade, inclusive a viúva, dona Elizabeth Teixeira. O filme será retomado em 1984, já nos estertores da ditadura, com Coutinho saindo à procura de Elizabeth, que será localizada no Rio Grande do Norte, onde vivia incógnita. Cabra Marcado para Morrer une, assim, duas pontas da história brasileira, o começo e o fim do regime de exceção, devolvendo a dona Elizabeth uma simbólica carta de cidadania que havia lhe sido roubada pelo golpe.
Mas como falar de Coutinho sem evocar a magnífica fase de títulos tão extraordinários como Santo Forte. Babilônia 2000 e Edifício Master? Com estes, Coutinho consagra-se como o documentarista que sabia entrevistar como nenhum outro seus personagens. Por algum motivo, as pessoas diziam para Coutinho coisas que não diziam para ninguém. Nesse misto de cinema social e psicanálise, surgiam histórias incríveis. Que traçavam a relação dos brasileiros com a religiosidade, como em Santo Forte, ou suas aspirações de felicidade, como em Edifício Master.
Nessa nova fase, Coutinho passou a abominar generalizações do seu passado marxista. Recusava-se a dizer que fizera um filme sobre a religiosidade como alienação, ou sobre a classe média, quando lhe pediam para falar sobre Santo Forte e Master. “As pessoas estão acima de tudo”, dizia, com respeito a seus personagens. Ao mesmo tempo em que aprendeu a entrevistar como ninguém, Coutinho sabia discernir os tipos adequados para seus filmes. “Não adianta a pessoa ter uma história incrível se não souber contá-la diante da câmera”, dizia. Ou seja, o sujeito precisava ser um bom ator para interpretar a sua própria história.
Referência insubstituível
Como Coutinho conseguia esses depoimentos incríveis? Era o que todos se perguntavam. E tudo parecia tão simples, que logo surgiu uma legião de imitadores, apenas para comprovar que não havia nenhuma facilidade naquilo que ele fazia. Em conversas, e sobretudo observando seus filmes, percebe-se que Coutinho havia desenvolvido um método seu, não codificado, e que lhe servia perfeitamente, embora fosse intransferível. Colocava-se no estado de atenção silenciosa que convidava à confidência. Sabia fazer as perguntas certas, no tempo certo. E, acima de tudo, tinha verdadeiro interesse pelas pessoas, atitude que é impossível fingir. Saí a sinceridade com que se abriam para esse olho-câmera solidário que os indagava. A contrapartida ética de Coutinho era a negativa de considerar a pessoa como parte de uma comunidade, de uma classe social ou de outro conceito geral qualquer. Coutinho as via como seres únicos, e esse é o maior respeito que se pode ter pelo próximo.
É claro que essas “conversas”, como ele as chamava, tinham o dom de iluminar regiões mais gerais da experiência humana. Mas isso era feito a posteriori, pelo público, e não por ele. Desse modo, Edifício Master pode, sim, ser considerado um mergulho no imaginário da classe média baixa brasileira, sem que isso elimine as singularidades das pessoas ouvidas. Ou Peões pode ser visto como flagrante da vida operária e sua relação com a política através de depoimentos dos que conviveram com o metalúrgico Lula. Mas a verdade é que o ser humano vinha sempre em primeiro lugar.
Tanto assim que o passo seguinte foi de uma radicalidade extraordinária, surpreendendo a quem pensava que o método Coutinho já estava estabelecido e regeria suas obras daí em diante. Jogo de Cena é uma continuidade com esse sistema; ao mesmo tempo, uma ruptura. As histórias de vida de mulheres são colhidas da maneira habitual. Mas agora, ou as próprias personagens as interpretam ou atrizes, famosas ou menos conhecidas, que reproduzem as histórias das mulheres anônimas que as experimentaram. Há uma flutuação ambivalente nesse dispositivo: não sabemos até que ponto algumas das histórias foram apenas interpretadas pelas atrizes ou elas colocaram nessas histórias alheias alguma coisa de suas próprias experiências. Intelectualmente estimulante por seu dispositivo, Jogo de Cena desperta uma emoção profunda nos espectadores. É um marco e implode os limites claros entre ficção e documentário.
Mas a reinvenção não parou por aí. Num filme que muitos consideraram de impasse (não este crítico), Moscou revela os bastidores de uma montagem de Checkov. Em As Canções, o mecanismo de Jogo de Cena é ampliado para outra dimensão, pesquisando-se com as pessoas as músicas que mais as tocaram em sua vida. Por fim, em Um Dia na Vida, Coutinho faz a montagem de um zapping de 24 horas por emissoras de televisão. Nesse filme que não pode ser exibido comercialmente, por questões de direitos autorais, temos um corte vertical no imaginário televisivo brasileiro como jamais foi feito.
Ainda passaremos algum tempo para avaliar a falta que Eduardo Coutinho nos fará. Sua Inteligência privilegiada, a maneira antipiegas com que aplicava seu humanismo radical, a capacidade de reinventar-se continuamente depois de declarado mestre, não se substituem com facilidade. Coutinho não deixa herdeiros. Deixa órfãos.
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Luiz Zanin Oricchio, do Estado de S. Paulo