Renato Pompeu devia estar mesmo muito doente, pois anteontem [sábado, 8/2] queixou-se a um amigo que não tinha vontade de ler. Renato Pompeu dedicou sua vida ao jornalismo, a ler e escrever. Publicou 22 livros, e resenhou um número incontável de obras. À noite passou mal. Levado para um hospital, morreu às 10h de ontem [9/2], aos 72 anos, de causa ainda não determinada. Talvez septicemia, infecção generalizada do organismo.
Andava muito feliz. Em outubro concluiu um curso à distância e se formou em história. Tinha encontro marcado com um professor para tratar da pós-graduação.
Renato marcou sua passagem por redações de jornais e revistas (Folha de S.Paulo, Jornal da Tarde, Veja, entre outras) não apenas pela qualidade do seu trabalho, mas por suas tiradas surpreendentes, às vezes desaforadas. Durante desentendimento com seu superior na Folha, Leão Serva, disse-lhe: “Leão, indubitavelmente você é o rei dos animais”. Serva achou graça, e passou a repetir o episódio.
Sua capacidade de resenhar livros surpreendia. Fernão Mesquita, então diretor de redação do Jornal da Tarde, recorda: “Ele deglutia um livro de 400 páginas em uma noite”. Perguntou-lhe como conseguia a proeza. “Disse que ia devagar nas primeiras quarenta páginas, para entender o esquema mental do autor; depois era fácil.” E as resenhas, diz, “eram impecáveis”.
Fernão também experimentou o estilo do redator Renato. Certo dia, entrou na sala do diretor e disse que queria se demitir. Fernão respondeu que, se ele quisesse não podia impedi-lo. O redator resolveu-se por ficar, mas apresentou uma série de exigências, uma delas ter uma cadeira exclusiva para si.
Fernão concordou. Lembra que Renato escrevia seu nome atrás da cadeira. E todos viam que ficava muito zangado quando um colega a levava para usar.
Memória de elefante
Renato não escondia que sofria de esquizofrenia. Em anos passados, quando sentia aproximar-se uma crise, ia a um hospital e se internava. Passada a crise, voltava ao trabalho. Não teve nenhum problema ao contar episódios da internação, em uma entrevista a Jô Soares. A plateia em princípio estranhou sua voz grave e a fala pausada. Mas logo não conseguia parar de rir com a forma irônica com que descreveu os fatos.
Nas redações, os jornalistas procuravam se esmerar em criar títulos criativos para as matérias. Certo dia, quando se falava sobre isso, Renato disse (com sua voz grave e pausada): “Eu sonho em dar o seguinte título: leia a matéria abaixo”.
Em certa redação surgiu um problema, durante a ditadura, com um repórter de uma sucursal. Tinha ido ao comando do Exército acusar um jornalista. O diretor da revista reuniu seus editores. Concluiu-se que o fato era verdadeiro, mas alguém disse que o colega deveria ser poupado, porque certamente estaria fora de si. Surge a voz de Renato: “Eu protesto. Sou louco, mas nunca dedei ninguém”.
Na virada de 1960 para 1970, Renato teve militância ativa contra o regime militar. Seu sobrinho Sérgio Pompeu diz que foi preso e torturado no DOI-Codi, instalação de repressão de São Paulo. “Apesar do seu jeitão, participou de algumas das ações.” Sérgio conta que sua avó escondia os livros do filho no forro da casa.
O jornalista e escritor morou em uma república com, entre outros, o cineasta Jorge Bouquet e a atriz Sônia Braga. “Diziam que não era um lugar underground, mas overground”, recorda um amigo. Em entrevista, a atriz lembraria esses fatos e as tiradas criativas de Pompeu.
Em certa época, Renato entrou como sócio em uma farmácia, existente no térreo do prédio em que morava. A clientela tinha direito a brindes literários. Quem gastava pouco, levava um texto já escrito. Gastos maiores, davam direito à cópia de texto mais elaborado, com a assinatura do autor. E quem consumia muito, podia dar o tema que uma história seria especialmente elaborada com ele.
Por muitos anos, Renato morou em um apartamento da rua Cardeal Arco Verde. Um corredor levava ao interior da casa, mas era mais do que isso. Nas paredes, havia bandeiras de times de futebol do interior, destacando-se as da Ponte Preta, de Campinas – o do coração.
José Maria dos Santos, editor-responsável do Diário do Comércio, para o qual Renato colaborava com suas resenhas, diz que o jornalista “tinha uma visão cultural do futebol”. Torcedor fervoroso, e dono de memória impecável, tinha lembrança de jogadores como Bipe e Pitico, e de Oscar, da Seleção brasileira, que haviam se destacado também na Ponte Preta.
Velho clichê
Nos anos de 1980, Renato Pompeu e José Guilherme Melchior, crítico literário e ensaísta, se envolveram em acirrada polêmica, que rendeu textos em jornais. José Maria descreve Pompeu como “um cometa reluzente em ambientes restritos”.
“Pertenceu a uma família de grandes jornalistas.” O pai, alto, elegante, era diretor de revistas do grupo Visão. Os filhos Sérgio, falecido, e Renato, seguiram-lhe o caminho. Sérgio Pompeu, filho de Sérgio, também se destaca na profissão.
Renato nasceu em Campinas, mas viveu em São Paulo. Fez o curso de Ciências Sociais da USP, que não pôde terminar. Ganhou três prêmios Abril e um Esso de Jornalismo. Em 1960, entrou no curso de ciências sociais da USP e no mesmo ano começou a trabalhar como jornalista. De seus 22 livros, destacam-se Quatro Olhos, de ficção, e Memórias da Loucura, de não ficção.
O amigo Marcos Fernandes Gomes, também jornalista, encontrava-se todo sábado com Pompeu – na casa de um e de outro, alternadamente. Marcos havia organizado em sua estante de livros, todos os de Renato. “Ele estava ansioso para ver.” Há um mês, Renato informou a Marcos que estava relendo Em Busca do Tempo Perdido, de Proust.
Todo dia, Renato ligava para o amigo para comentar o trecho que acabara de ler. “Se eu não estava, ele deixava mensagem, e toda vez repetia o número de seu telefone.” No último sábado, um compromisso de Renato impediu o encontro.
Sérgio Pompeu, o sobrinho, contou que ontem, apesar de não se sentir bem, o tio atualizou seu blog. “Ele vinha se queixando, na última semana, de estar com moleza. Pensávamos que era por causa do calor.” Anteontem à tarde os dois se falaram. “Tudo bem?”, perguntou Sérgio. “Tudo bem”, foi a resposta.
No fim da noite, a empregada notou que Renato estava com febre alta e confusão mental. Foi levado a um hospital, depois a outro, com deficiência respiratória aguda e febre de 41°C. Pouco depois de chegar, faleceu.
Por pouco escapou do clichê da crônica policial, que Renato jamais escreveria: “Faleceu ao dar entrada no hospital”.
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Valdir Sanches é jornalista