Se Eduardo Coutinho tivesse dirigido um único filme, “Cabra marcado para morrer”, já seria o suficiente para ele entrar para a História do cinema brasileiro. Mas Eduardo Coutinho também dirigiu “Santo forte”, “Edifício Master”, “Jogo de cena”, “As canções”, o que lhe garante um lugar de honra na História do cinema. Ponto.
O olhar de Coutinho sempre foi original. Desde os tempos em que fazia parte da equipe que deu as diretrizes do que seria uma boa reportagem no “Globo repórter”. Eu o conheci em Cabo Frio, em 1980, alguns dias antes do primeiro julgamento de Doca Street. Para quem não está ligando o nome à pessoa, Doca seria julgado pelo assassinato de Angela Diniz ocorrido quatro anos, um crime passional que mobilizou o país. Não sei bem o que eu fazia lá. Era uma matéria para uma revista semanal. Coutinho entrevistava os jurados do caso. Achei-o ingênuo. Jurados não podem dar entrevistas sobre o crime que estão julgando. Se derem, são eliminados do júri. Se eles não falavam do crime, o que mais poderia interessar?
Quando assisti ao programa, percebi que o bobo era eu. Coutinho deixou os jurados falarem. Sobre eles, sobre suas vidas, sobre suas ideias. Assistindo àquele programa, ficava mais fácil entender a polêmica decisão do júri que acatou a tese da defesa de “excesso culposo no estado de legítima defesa”, permitindo que o juiz fixasse a pena de apenas dois anos pelo crime, com direito a sursis, isto é, à suspensão da prisão. Doca saiu livre do Tribunal de Cabo Frio. Por quê? O “Globo repórter” explicava.
Em meio ao choque provocado pela tragédia que tirou a vida de Eduardo Coutinho no último domingo, é triste ver a intimidade do cineasta exposta no jornal. Ele era um homem discreto. Amigos que o conheciam há 50 anos revelam agora que não sabiam dos problemas que enfrentava com o filho. A própria irmã chegou ao enterro dizendo que não sabia da vida do cineasta em família. Coutinho acostumou-se a revelar a intimidade dos outros. A sua, ele mantinha entre quatro paredes.
Quem era o homem que existia atrás do documentarista genial? Ele nunca mostrou. Qualquer definição de Eduardo Coutinho limitava-se a descrever seu mau humor e seu jeito ranzinza. Quando se ia um pouco mais além, falava-se de seu hábito tabagista. E só. O resto era cinema. Como se alguém pudesse ser só cinema e duas ou três manias. A cena da morte de Eduardo Coutinho revelou mais sobre sua intimidade do que todos os seus 80 anos de vida.
O documentarista que faz parte da História do cinema não merecia acabar como notícia das páginas policiais. Eduardo Coutinho inventou um jeito de fazer documentários desrespeitando todas as regras do jornalismo. Agora, tem sua própria vida cercada de quem, o quê, quando, onde, como e por quê? Ele não se interessaria pelas reportagens que estão sendo feitas sobre a sua morte.
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Artur Xexéo é colunista de O Globo