Paco de Lucía, nascido em uma família de músicos e que se tornou um dos maiores violonistas do mundo, dominando a música flamenca e descobrindo novas plateias para ela por meio de uma mistura com o jazz e outros gêneros, faleceu na quarta-feira [26/2], no México. Ele tinha 66 anos.
Sua morte foi confirmada por um funcionário municipal da cidade natal do sr. De Lucía, Algeciras, na costa sul da Espanha.
Gaspar Armando García Torres, procurador-geral do estado de Quintana Roo, disse à radio Enfoque, do México, que o sr. De Lucía teve um ataque cardíaco enquanto passava férias no balneário caribenho de Playa del Carmen, morrendo no hospital, segundo a Associated Press.
O duo com Camarón de la Isla
O sr. De Lucía se firmou como um importante artista de flamenco nos anos 60 e 70, notadamente após formar uma parceria com Camarón de la Isla [ver aqui e aqui], um cantor que muitos consideram ter revivido e revolucionado o flamenco na Espanha. O duo lançou mais de 10 discos, tanto de flamenco clássico como de uma mistura com rock e pop. Camarón de la Isla faleceu em 1992.
Com o apoio de músicos de bongô e um baixo elétrico, o sr. De Lucía produziu uma das músicas mais conhecidas da Espanha, uma rumba chamada “Entre dos aguas” [ver aqui], que fazia parte de um álbum lançado em 1973, nos anos finais da ditadura de Franco.
O sr. De Lucía era famoso pela “intensidade de sua concentração” e pelo modo como havia “sacudido as raízes tradicionais do flamenco”, escreveu Ben Ratliff no The New York Times, em 2004 [ver aqui], em uma crítica a uma apresentação de De Lucía, acompanhado de cantores e uma seção rítmica, no Teatro Beacon, em Manhattan.
O virtuosismo do sr. De Lucía estava assentado em antigas técnicas flamencas: o dedilhado; as passagens rápidas, com cada nota nitidamente articulada; um toque que podia ser suave ou imperioso; o fraseado suspenso e, acima de tudo, um senso volátil de dinâmica e drama.
“Ainda sou um purista”
Ele abriu as fronteiras tradicionais do flamenco aos ritmos, harmonias e instrumentos de um mundo mais amplo. Mesmo quando tocava um tango, usando acordes de jazz ou acompanhado de um baixo elétrico, sua música permanecia inconfundível e decisivamente flamenca.
“Eu sou um purista dentro de minha aura de revolucionário, vanguardista ou autor”, disse o sr. De Lucía em uma entrevista, em 2004, ao jornal espanhol El País. “Ainda sou um purista por que sempre respeitei o que acho que é respeitável. O que tenho não é a obediência que os puristas continuam a ter, mas o respeito à essência, ao antigo, ao valioso. Memória.”
E acrescentou: “O que fazemos tem de ter credibilidade. Não importa quão longe se vai harmonicamente, não importa o quão louco pareça, tem de cheirar e soar como flamenco.”
Na mesma entrevista, o sr. De Lucía disse que a pressão para gravar com frequência – algo desconhecido para as antigas gerações de artistas flamencos – o compeliu a continuar ampliando sua música, “para continuar crescendo e aprendendo.” Ele insistiu que a sua técnica prodigiosa nunca foi um fim em si mesma.
“Você deve ter suficiente domínio técnico, de modo a esquecê-lo”, ele disse. “É quando você pode começar a se expressar.”
Ampliando os limites
Ele nasceu Francisco Sánchez Gómez, em Algeciras, em 21 de dezembro de 1947, e aspirava tocar violão desde a infância, após ter recebido as primeiras lições do seu pai. Quando tinha 14 anos, ganhou um concurso internacional de flamenco e logo depois fez a sua primeira gravação, “Los chiquitos de Algeciras”, junto com o irmão Ramón, que também tocava violão.
Seu nome artístico foi inspirado em sua vizinhança cigana. Havia muitas crianças chamadas Paco (hipocorístico de Francisco) – disse –, de modo que ele passou a ser chamado de “o Paco de Lucía”, o nome de sua mãe.
No início dos anos 80, ampliou a sua duradoura colaboração com os irmãos, Ramón e Pepe de Lucía, um cantor, formando um sexteto com Jorge Pardo, Carlos Benavent e Rubem Dantas, um percussionista brasileiro.
Para modernizar o flamenco, o grupo introduziu um novo instrumento de percussão, o cajón peruano, uma caixa de madeira com seis lados que eles descobriram durante uma excursão pela América Latina e que se tornou, a partir de então, um elemento básico da música flamenca.
Com a volta da Espanha à democracia, o sr. De Lucía passou a ficar cada vez mais tempo fora do país nos anos 80, muitas vezes tocando ao lado de importantes músicos de jazz, particularmente os violonistas John McLaughlin e Al DiMeola. Eles excursionaram pelo mundo todo e suas gravações incluíram “Friday night in San Francisco” [ver aqui], disco que vendeu mais de um milhão de cópias.
Reconhecimento em vida…
Em 1989, o sr. De Lucía se apresentou no Carnegie Hall, onde “seu programa de músicas flamencas e melodias da Andaluzia tinha o timbre emocionalmente absorvente de uma conversa apaixonada e brilhante”, escreveu Stephen Holden em sua crítica no The Times [ver aqui].
Em 2012, um álbum duplo de concertos ao vivo agraciou o sr. De Lucía com o seu segundo Grammy Latino para a melhor gravação de flamenco. O primeiro veio em 2004, por “Cositas buenas”, que conta com outro grande violinista flamenco, Tomatito [ver aqui].
O sr. De Lucía recebeu alguns dos mais prestigiosos prêmios da Espanha, incluindo a Medalha de Ouro ao Mérito em Belas Artes [ver aqui], em 1993 [e não 1992, como reportado no artigo original], e o Prêmio Príncipe de Astúrias das Artes [ver aqui], em 2004.
… e algumas declarações
Informações sobre os seus herdeiros não estavam imediatamente disponíveis. Uma declaração da família, publicada em jornais espanhóis, dizia “Paco viveu como desejava e morreu brincando com os filhos na beira do mar.”
Sua morte gerou homenagens na Espanha e em outros países. José Ignacio Wert, ministro da Cultura da Espanha, chamou o sr. De Lucía de “uma figura única e insubstituível”. Em um comunicado, o pianista Chick Corea disse: “Paco me inspirou na construção do meu próprio mundo musical, tanto quanto Miles Davis e John Coltrane, ou Bartok e Mozart.” E José Mercé, um cantor de flamenco, disse que ninguém alcançará o nível do sr. De Lucía nos próximos 200 anos.
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Raphael Minder é jornalista do New York Times