Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Gabo, o poder e a literatura

– Não vê o séquito? Como o dos imperadores romanos.

Gabo apontou com a mão a poeira que a comitiva levantava, ali ao longe, a quilômetros de distância de onde estávamos. Havíamos nos perdido no caminho para Tipitapa, no departamento nicaraguense de Malacatoya, e caía sobre nós um sol da justiça naquele mês de janeiro de 1985. Durante quase meia hora aguardamos junto ao automóvel que surgisse algum sinal ou chegasse alguém que nos indicasse o caminho. Até que finalmente, como no poema de Rubén, vimos chegar, ouro e ferro, o cortejo dos paladinos. Mais ferro do que ouro, para dizer a verdade. Nós o perseguimos até nos incorporar a ele e assim desembarcar ao mesmo tempo que Fidel Castro no engenho de açúcar que o líder cubano iria inaugurar.

“Como os imperadores romanos.” Compreendi imediatamente o fascínio de García Márquez pelo poder, e essa imagem ficou-me gravada para sempre. “O que acontece com você é que você gosta dos ditadores”, havia lhe dito um dia Omar Torrijos, talvez o governante com quem mais afinidades e cumplicidades estabeleceu. Mas, à margem das suas simpatias pessoais – que o levaram a estabelecer laços de amizade com Fidel Castro, como não deixaram de lhe recordar em vida, mas também com Bill Clinton e com Felipe González –, Gabo, assim como tantos outros escritores ilustres, sentia uma apaixonada curiosidade pelo poder em exercício, fruto do compromisso político que desde muito jovem tinha adotado e que manteve até o final.

Um dia me telefonou e me pediu que o apresentasse a Adolfo Suárez, já aposentado da vida pública. “Felipe me diz que é um personagem interessante.” “Quer também conhecer Aznar?”, perguntei-lhe, “afinal de contas, é o atual presidente do Governo”. “De jeito nenhum”, apressou-se em responder, “não me interessa. Clinton já me ofereceu isso, depois de jantarmos em Martha’s Vineyard. E me neguei. Sabe como lhe disse? I don’t like him. Para que ficasse bem claro.”

Marcamos com Adolfo de almoçar, e ele chegou ao restaurante antes que nós. Quando fiz as apresentações, em meio às desculpas pelo atraso, lhe comentei: “Eis aqui o autor de Cem Anos de Solidão, o Quixote do século XX”. “Você se engana”, interrompeu-me o Nobel, “esse é o livro que vai ser lançado dentro de alguns meses”. Falava de O Amor nos Tempos do Cólera. Com Suárez estabelecemos um ritual segundo o qual a cada visita de García Márquez a Madri almoçaríamos juntos os três. Nós o cumprimos reiteradas vezes. Falávamos só de política, pois o ex-presidente não parecia interessado em nenhuma outra coisa, e falar de política é sempre falar do poder: a ambição de conquistá-lo, a maneira de exercê-lo, o fracasso de perdê-lo.

Foi o próprio Gabo quem me recomendou a leitura da biografia de João Paulo II, Sua Santidade, escrita por Marco Politi: “Você vai se apaixonar, é um livro sobre o poder”, me disse ele a guisa de explicação. Daquelas conversas, de tantas outras que mantivemos, da inevitável experiência própria, cheguei à conclusão de que na realidade não é tanto que os governantes alcancem o poder, mas que este se aproprie precisamente daqueles. Embora no caso dos imperadores romanos parecesse diferente: governavam, guerreavam, administravam e se entregavam aos prazeres da vida, tudo ao mesmo tempo. O império viajava com eles, assim como a revolução acompanhava Fidel Castro naquele meio-dia ardente de 1985.

Fascínio literário

Gabo se escangalhava de rir quando Torrijos lhe salientou sua atração pelos ditadores, “mas pelo menos que sejam de esquerda”, disse para si mesmo. Para os de direita escreveu seu anátema em O Outono do Patriarca, inspirado na figura execrável do venezuelano Pérez Jiménez. Ao fim e ao cabo, todos ou quase todos os escritores do boom latino-americano têm seu próprio livro sobre um déspota da sua escolha. A vizinhança com os protagonistas do poder, com os personagens mais do que com suas políticas, é uma constante na biografia de muitos grandes escritores. A própria literatura é também uma forma de poder, muitas vezes mais decisiva e demolidora do que qualquer outra. A queda-de-braço entre Quevedo e Olivares terminou com o primeiro sendo atirado à prisão, mas a influência do escritor sobre a vida espanhola foi historicamente muito mais relevante que a do Conde Duque.

Literatura e poder andam de mãos dadas com incomum frequência desde que reis e imperadores exerciam o mecenato, e vates e poetas se dedicavam, em troca, a elogiar suas figuras. Lênin descreveu os jornais como sendo os melhores agitadores e organizadores políticos que se possa imaginar, e, para nossos contemporâneos, o compromisso político ou o serviço ao seu país sempre acabaram sendo desculpa ou razão que justificasse o casamento de ambos os mundos. Na América Latina, não é preciso remontar-se aos exemplos de Martí, Miranda, Bello, Sarmiento e tantos outros. Octavio Paz e Carlos Fuentes foram embaixadores, Vargas Llosa disputou sem êxito eleições democráticas, e o próprio García Márquez se viu tentado, ainda que brevemente, a encabeçar uma coalizão de esquerda na Colômbia.

Mas Gabo não precisava de outros ouropéis além daqueles do seu engenho para influir na sociedade que o cercava. Belisario Betancur, outro literato metido a governante, teve que explicar a Reagan, sendo ambos os presidentes de seus países, que García Márquez era um autêntico herói nacional, e que as dificuldades que ele enfrentava na época para obter um visto de entrada nos Estados Unidos significavam uma afronta a todos os colombianos. Não há provavelmente em toda a história da Colômbia ninguém que tenha recebido um reconhecimento tão explícito como ele.

Os povos necessitam de algum tipo de épica que os mobilize, inclusive quando se trata de uma épica da destruição. Os criadores e artistas são os encarregados de construí-la. García Márquez, junto com os escritores doboom, foi em grande medida o responsável de que os olhos do mundo tenham voltado sua atenção na década de setenta para as veias abertas da América Latina, para usar as palavras de Eduardo Galeano. Gabo explicou muitas vezes que sua amizade com Fidel começou precisamente pela “convicção de que há um caminho latino-americano que pode ser encontrado. Castro abriu uma grande distância nesse sentido”. Depois, as afirmações políticas, os acordos e as discrepâncias deram lugar a uma relação pessoal estreita. García Márquez assim relataria: “Dizem que sou um mafioso, porque meu senso de amizade é tal que parece um pouco com o dos gângsteres; de um lado, meus amigos, e, do outro, o resto do mundo. A fama dá acesso à possibilidade de praticamente todo tipo de amizade, e os chefes de Estado não escapam. Com alguns ficam os laços, e com outros, não. A amizade se estabelece por certas afinidades humanas ou literárias. Em Cuba encontrei uma consciência dos problemas latino-americanos, da necessidade de uma unidade de ação na América Latina. Depois desenvolvi minha amizade com Fidel Castro, que seguiu outro rumo, inclusive divergente do político: onde começam os desacordos desse gênero começa outro tipo de afinidades humanas e de compreensão da situação cubana”.

A lembrança dessa explicação, que ele me fez na época para que fosse publicada, é mais do que pertinente nas horas que correm, quando permanece o luto por sua perda e as pessoas se perguntam como foi realmente a sua vida. Mas hoje não posso deixar de pensar, evocando a imagem da campina nicaraguense e das nuvens de pó levantadas pelo cortejo oficial dos rebeldes, que no fim das contas era sobretudo o fascínio literário pelo poder o que justificava as relações de Gabo com quem o exercia. Como redivivos imperadores da antiga Roma.

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Juan Luis Cebrián é presidente do EL PAÍS e membro da Real Academia Espanhola.