Foi num dos três últimos dias de julho ou dos três primeiros de agosto de 1978, e foi em Havana. Eu havia chegado na madrugada do dia 27 e ia ficar na ilha durante quase dois meses para trabalhar em um livro sobre a Revolução Cubana.
García Márquez era um dos hóspedes luminosos do hotel Riviera, na época o melhor de Cuba, e decidi ir até lá sem nenhum aviso. Queria conversar sobre a ilha. Aos meus 30 anos recém-estreados, eu ainda era capaz desse tipo de ousadia. Assim nos conhecemos.
Um ano depois daqueles encontros fugazes em Cuba, me mudei de Madri para a Cidade do México. Tornamos a nos encontrar, e então foi para sempre.
Esses anos todos foram de desassossego e de esperança, de temporais e calmarias, até que o mundo mudou e nós, não. Não na essência. Não na memória e no afeto.
Lembro bem do tempo que durou a escrita de “O Amor nos Tempos do Cólera”, de como anotações esparsas e esboços velozes se transformaram nos “Doze Contos Peregrinos”, da cuidadosa arquitetura que ergueu “O General em seu Labirinto”, da alegria incontida de quando terminou de escrever “Notícia de um Sequestro”.
Lembro disso e de muito mais: da sensação de vazio e solidão que ele transmitia quando terminava de escrever, e, em especial, de quando escreveu “O Rastro do Teu Sangue na Neve”, que continuo achando o mais belo dos “Doze Contos Peregrinos”.
Poucas vezes vi alguém tão desolado. Quando eu ia saindo daquele casarão branco e imenso, daquele endereço improvável –a esquina da rua Fogo com a rua Água–, perguntei o que ele tinha. E me disse: “Escrevi um conto muito triste, por isso estou assim, esvaziado”.
Em Cartagena das Índias, Gabo me guiou pelos cenários de “O Amor nos Tempos do Cólera”. Mostrou-me a janela onde Fermina Daza, esplendidamente juvenil, derretia Florentino Ariza de amores impossíveis. E o casarão com a enorme mangueira no quintal, na qual se empoleirou o papagaio do doutor Juvenal Urbino. Falava deles como se estivesse falando dos amigos com quem jantamos na noite anterior.
Levo pela vida um enorme e formidável baú de lembranças. E quando penso no Gabo, confirmo a certeza de uma generosidade sem limites, de solidariedade silenciosa e absoluta, de lealdade sem fronteiras. De alguém que nunca foi movido por outra força além da amizade e do afeto.
Até o fim manteve o mesmo sorriso cálido com que me recebeu naquela longínqua tarde do verão de Havana, e que mais tarde percebi que ocultava uma melancolia de pôr de sol, uma insuperável nostalgia da infância.
Seus últimos anos foram passados no casarão de San Angel. Quieto no seu canto, navegando nas águas mansas de uma memória enevoada.
Certo fim de tarde de abril de 2009, ouvi dele uma frase apenas sussurrada: “Eu já não cuido de nada, não me interesso por nada, não me inquieto por nada, não me preocupo por nada”. E, depois de um silêncio fugaz, fulminou: “Isso é o que me preocupa”. E riu aquele riso que distribuía luz mas não apagava o lampejo de suave melancolia que jamais saiu de seus olhos.
Solidão e nostalgia
Todos os seus livros são livros da solidão e da nostalgia, e também da busca desesperada daquela segunda oportunidade que ele implorava para os Buendía de “Cem Anos de Solidão”.
Tudo que ele escreveu é revelador da infinita capacidade de poesia contida na vida humana. O eixo, porém, foi sempre o mesmo, ao redor do qual giramos todos: a solidão e a esperança perene de encontrar antídotos contra essa condenação.
Lembro, enfim, que tempos atrás ele estava em Zurique e que foi apanhado por uma tormenta de neve.
Para escapar dela, entrou num bar de fim de tarde. E contou para um de seus irmãos: “Tudo estava em penumbra. Um homem tocava piano para casais de namorados. E entendi que eu queria ter sido aquele homem que tocava sem que ninguém visse o seu rosto. Tocava só para que os namorados se amassem mais”.
Assim viveu a vida que lhe foi dada para viver: querendo se proteger na penumbra enquanto ajudava namorados.
Assim passou seus tempos derradeiros: ancorado na memória de uma vida pródiga, luminosa. Vivendo na esquina da água com o fogo.
Levarei comigo para sempre seu caminhar de bailarino caribenho, seu sorriso de fulgores, sua entrega à vida. Sua solidão infinita, rompida apenas pelo afeto dos amigos, escudada numa alegria travessa, e o Gabo querendo ser aquele pianista de fundo de bar, aquele que tocava apenas para que os namorados se amassem mais.
Esse vazio, levarei para sempre. Um vazio infinito, do tamanho da minha dor.
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Eric Nepomuceno é autor de “Antologia Pessoal”, “Coisas do Mundo” e “O Massacre”. De García Márquez, traduziu para o português “Cem Anos de Solidão” e “Viver para Contar”, entre outros