Etiquetas ajudam a organizar o caos na livraria e na cabeça do leitor. Mas é certo que toda etiqueta precisa ser recebida com cautela. Entre os autores do “realismo mágico” –ou, se preferir, “realismo fantástico”– há mais diferenças de intensidade e linguagem do que semelhanças.
Os romances e contos de Gabriel García Márquez, por exemplo, são visivelmente menos complexos que os de Julio Cortázar, Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa.
Em “Cem Anos de Solidão” e nos contos de “A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e Sua Avó Desalmada” há bem menos fragmentação discursiva, metalinguagem e fluxo de consciência do que nos igualmente festejados “O Jogo da Amarelinha” (Cortázar), “A Morte de Artemio Cruz” (Fuentes) e “Conversa na Catedral” (Llosa).
Dos ficcionistas do “boom da literatura latino-americana”, Gabo é o grande sedutor, que cativa logo na adolescência. Essa característica deve ter pesado a seu favor na votação para o Nobel de Literatura.
Coisa mais fácil é apaixonar-se por sua prosa sem obstáculos, por seus heróis inesquecíveis: os Buendía, o mago Melquíades, a bastarda Cândida Erêndira, o casal Florentino e Fermina etc.
Atmosfera encantatória
Enquanto as torções de linguagem do melhor Cortázar soam antipáticas ao leitor menos experiente, a fantasia lírica e bem-humorada de Gabo, sem contorções ou sobreposições polifônicas, conquista logo no primeiro contato.
Nesse caso, simplicidade não significa ausência de sofisticação. Significa, antes, alcance universal. Tão universal que o conto “A Luz É Como a Água”, de “Doze Contos Peregrinos”, pôde ser destacado do conjunto e relançado para o público infantil.
Tanto o ficcionista quanto o jornalista eram exímios contadores de histórias. Gabo dizia que sua maior influência havia sido a avó materna, que povoara sua infância de fantasmas e milagres.
Comparar sua literatura com a dos mestres do “realismo mágico” não rende análises interessantes. O verdadeiro irmão espiritual de Gabo é Ray Bradbury, outro grande contador de histórias.
Nem mesmo as dezenas de personagens reunidas para narrar a fundação e extinção de Macondo –miniatura da América Latina– conseguem complicar o alegórico “Cem Anos de Solidão”.
Os prodígios sobrenaturais que acompanham as gerações da família Buendía fluem pacificamente. A convergência de realismo e fantasia é tão natural que instaura, sem conflito, outra realidade, em que mito e sonho ganham total concretude.
Nos anos 50 e 60, cansado de tanta razão, o Velho Mundo foi arrebatado por essa atmosfera encantatória. O encanto continua até hoje. Macondo é tão importante no imaginário literário, que gerou sua antítese: o movimento McOndo. Mas toda antítese não deixa de ser também uma forma de homenagem.
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Luiz Bras é crítico literário e escritor, autor da coletânea de contos “Pequena Coleção de Grandes Horrores” (Circuito)