“No dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar se levantou às cinco e meia da manhã para esperar o barco em que chegaria o bispo.” Estas são as primeiras linhas de um livro menor do colombiano Gabriel García Márquez, “Crônica de uma morte anunciada”, de 1983. É um exercício de estilo, o relato de um assassinato que o leitor sabe de antemão que irá acontecer, tanto pelo título quanto pela primeira frase. Ainda assim, quem lê estas duas primeiras linhas é lançado à história com uma série de conjecturas: se Santiago sempre acordava cedo, se já sabia de sua morte, se o bispo sabia dela, se o encontro de ambos foi funesto ou fortuito, enfim, uma série de sugestões para – como disseram autores tão diversos quanto Poe, Quiroga e Cortázar – capturar o leitor e conduzi-lo ao desfecho.
O mais célebre livro de García Márquez, “Cem anos de solidão”, de 1967, começava de forma semelhante, porém de modo ainda mais radical: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de se lembrar daquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Um início repentino em que o leitor é conduzido, de uma só vez, ao futuro e ao passado de Aureliano. Por astúcia narrativa, cria-se em três linhas uma sugestão do instante em que se conjugam a lembrança da infância diante da iminência da morte: a criança que se encantou com o gelo, se tornou coronel e esteve à beira da execução.
O colombiano, como os grandes, praticou ao longo da carreira o exercício da repetição e da variação, com graus diversos de felicidade. Entretanto, no seu último grande livro, aquele no qual o personagem é ele mesmo, a história e sua forma são outras. No parágrafo inicial do primeiro livro de sua trilogia autobiográfica, de 2002, “Vivir para contarla”, (literalmente “viver para contá-la”, no Brasil “Viver para contar”, publicado pela Record), não há antecipação alguma: “Minha mãe me pediu que a acompanhasse para vender a casa”. No livro em que repete parágrafos inteiros, com variações, dos “Cem anos de solidão”, o jovem escritor anônimo e apaixonado é alheio ao que possa significar a morte ou o aniquilamento, mas também a fama. Até mesmo a foto da capa nas diversas edições do livro é a de García Márquez, ainda criança, os olhos arregalados, exalando espanto e curiosidade. Cabe dizer que o projeto da trilogia foi interrompido já neste primeiro livro. No caso de García Márquez, a própria história é a única da qual não se chega a antecipar nem a escrever o fim.
A tarefa de construir a versão oficial do homem que se fez escritor e do escritor que se fez mito coube ao inglês Gerald Martin, que dedicou 17 anos de trabalho e entrevistas para fixar sua versão em “Uma vida” (2008). García Márquez, então, já não escrevia mais. Seu ocaso foi com “Memória de minhas putas tristes” (2005), cuja brevidade opõe-se à caudalosa autobiografia. Chama atenção o uso da primeira pessoa, experimentado já no projeto anterior, mas agora sob o véu da ficção: “No ano de meus noventa anos quis me presentear com uma noite de amor louco com uma adolescente virgem.” Mais uma vez, o princípio e o fim.
Essa curta exposição de frases iniciais – que não cita obras centrais como “O outono do Patriarca” (escrita toda ela em apenas um parágrafo, sem quebras) – quer chamar a atenção para o escritor, além do inventor do realismo mágico, do amigo de Fidel Castro e Bill Clinton, do criador de Macondo e do maior representante do boom da literatura latino-americana (muito embora o personagem García Márquez seja efetivamente tudo isso).
Releitura de textos coloniais
A peculiaridade do colombiano foi ter sido um grande escritor, de apelo popular, num momento em que o negócio da literatura efetivamente se globalizava, e ter sabido manter-se como grande personagem na sociedade do espetáculo. Chegou-se ao cúmulo de que seus gestos passaram a ser tão valorizados quanto suas obras: em 2013, já recluso, foi notícia no mundo ao surgir numa inauguração de bingo e posar fazendo um gesto obsceno para os fotógrafos.
A despeito da figura folclórica, García Márquez é o autor de um romance que trilhou a via da releitura dos textos coloniais latino-americanos – na tradição de Oswald de Andrade (“Pau Brasil”) e Alejo Carpentier (“O reino deste mundo”), recontando a história do continente por uma perspectiva bem-humorada que dialoga com uma tradição que vai da Bíblia aos livros de Marco Polo e das “Mil e uma noites”. E este livro tem apelo popular, chega a ceder a certa imagem caricata do continente, sem se ater a aspectos culturais específicos, como chegou a fazer o romancista e antropólogo peruano José Maria Arguedas em seu “Os rios profundos”. Com “Cem anos de solidão”, García Márquez foi o responsável pela criação de uma América legível, violenta e maravilhosa.
Cabe ao tempo libertar o escritor e sua literatura do personagem e do mercado, e ir decantando suas páginas memoráveis. Por hora, sirvam-nos de réquiem as últimas palavras de seu livro final: “Era finalmente a vida real, com meu coração a salvo, e condenado a morrer de bom amor na agonia feliz de qualquer dia depois de meus cem anos.”
******
Wilson Alves-Bezerra é professor de literatura hispano-americana