A morte de Gabriel García Márquez estimula uma reflexão sobre os caminhos literários da América Latina. Mas como refletir sobre a América Latina se a América Latina, como queria Borges, é uma ficção? Apenas uma artimanha ficcional seria capaz de conferir unidade a um continente de contradições? Nesse ponto, Borges parece trair Borges. O simples fato de haver narrativas sobre a América Latina transforma a unidade da América Latina em uma realidade.
Desde os modernismos hispânicos – especificamente, desde o nicaraguense Rubén Darío, no fim do século XIX –, escritores têm se alimentado da promessa de uma literatura latino-americana. Paradoxalmente, a literatura recebeu a incumbência de transformar a ficção da unidade da região em realidade. Esse sonho tem suas raízes no romantismo. Foi o fio condutor da aventura latino-americana, inclusive para aqueles que, como Borges, cinicamente negavam a realidade desse sonho.
Para tanto, a literatura precisaria superar dialeticamente os modelos europeus. Mais do que isso: produzir uma literatura de exportação, como propunha Oswald de Andrade no Brasil. O chamado boom latino-americano, que engloba autores díspares como Márquez, Llosa, Borges e Cortázar, surgiu sob essa premissa: encontrar um mito fundador americano e traduzi-lo em forma romanesca. O realismo mágico, fantástico ou maravilhoso, nomenclatura que tira o sono de acadêmicos, se insere nesse movimento mais geral. É uma etapa decisiva da emancipação artística latino-americana no século XX.
Uma das críticas a esse boom, feita pelas gerações seguintes de escritores, acusa o realismo mágico de ser vertente do exotismo que contribuiu para forjar falsa imagem latino-americana. Outra crítica consiste em lembrar que esse realismo sui generis existia na América Latina antes de se transformar em sucesso mundial de mercado. Data das décadas de 1920, de mestres como o argentino Macedonio Fernández, o guatemalteco Miguel Ángel Asturias e o mexicano Juan Rulfo. As obras desses dois – “Hombres de Maíz” e “Pedro Páramo” –, publicadas respectivamente em 1949 e 1955, poderiam ser entendidas como marcos desse gênero.
Nostalgia e solidão
Embora pertinentes, as críticas são modelos redutores. A primeira reduz o realismo mágico a estereótipo, esvaziando-o do sentido político que o motiva. A segunda, o reduz a uma questão de cânone. Como situar García Márquez nesse embate? Um mito fundador da América surge em um de seus primeiros romances, “Ninguém Escreve ao Coronel” (1961). Sob influência bolivariana e autobiográfica, Márquez situa a figura do coronel no centro da narrativa latino-americana. Ao pintar um continente, torna-o um espaço simultaneamente antimoderno e feliz, protegido por caudilhos. Imunizar-se do processo modernizador europeu é preservar o espaço criativo das comunidades autóctones.
O mito da simbiose entre vida e magia antimoderna anima o cerne da obra de Garcia Márquez, em uma mescla de potência fabuladora e ambivalência ideológica. Esse mito se consuma em sua obra-prima, “Cem Anos de Solidão” (1967). A Aracataca do menino Gabo se transmuta na Macondo mágica pré-capitalista – espaço da potencialidade em que real e imaginário se encontram. Os Buendía alegorizam os milhões que, vivendo às margens do mundo, conseguem preservar relações comunitárias fortes. Márquez sinaliza para um horizonte além do desencantamento do mundo e da vida instrumentalizada de Weber e Adorno. À luz da antropologia econômica de Karl Polanyi, sua obra pode ser lida como uma crítica à planificação econômico-política que destrói as comunidades. Cada espaço do mundo deve se modernizar em seu próprio ritmo. E por seus próprios meios.
Em “O Amor nos Tempos do Cólera” (1985), a idealização de uma pequena cidade caribenha do século XIX, o amor de Florentino e Fermina, em meio à velhice e à morte, também são modulações desse arcaísmo. Mesmo em seus últimos romances, Garcia Márquez continuou reeditando esse mito edênico da América pré-burguesa. Não seria essa a base de “Memórias de Minhas Putas Tristes” (2004)? O narrador idoso, apaixonado por uma jovem, tece lembranças entremeadas pela presença dessas representantes da primeira profissão do mundo. Na América-Macondo, tudo envelhece, nada morre. As putas podem ser tristes, mas o encanto de sua lembrança de juventude é o bastante para imortalizar o fim de uma vida.
Mas nem tudo é fantasia. Neste momento, uma legião de imbecis deve estar apedrejando a obra de Garcia Márquez. Fazem-no em virtude da terceira crítica redutora: sua fidelidade ao comunismo e a Fidel Castro. Essa é uma prova de que sua obra, como diagnóstico da América, continua atual. Os personagens da ficção migraram para a realidade com sinais trocados. O lugar antes ocupado pelos coronéis hoje é gerido pelos agentes infiltrados da “modernização”, ou seja, populistas disfarçados de democratas e caudilhos liberais a serviço do capital. Eles são os novos administradores da vida. Missionários da utopia e da felicidade.
A despeito das farpas ideológicas, estéticas ou canônicas, qualquer leitor que ame literatura sabe que “Cem Anos de Solidão” é um dos maiores romances escritos no século XX, um dos maiores da língua espanhola. Como queria Garcia Márquez, só se pode contar uma vida depois de a termos vivido. Talvez a nostalgia e a solidão pregressas que podemos viver em seus livros contenham uma mensagem para um futuro que o escritor espera que consigamos cumprir. Ainda neste mundo real. E, com esperança, ainda nesta vida.
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Rodrigo Petronio é escritor e filósofo. Professor da Faap e do Museu da Imagem e do Som (MIS)