Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os finais de Gabo

Existem quase tantas razões para se celebrar a obra de Gabriel García Márquez quanto há leitores de Gabriel García Márquez. O denominador comum entre eles é, naturalmente, a mestria no realismo mágico ou fantástico, que, em boa parte dos anos 1960 e 1970, parecia ser o único estilo literário capaz de dar conta da América Latina.

Como um entre milhões de leitores de Gabo, também tenho outra razão íntima e favorita para celebrar-lhe a obra. (Enfatizo essa expressão, “celebrar a obra”, porque a acho mais sensata do que o clichê “lamentar a morte”, aos 87 anos, de uma pessoa tão produtiva. Ora bolas, a natureza tem de seguir o seu curso…) Tal razão começou a se formar muito antes de eu sequer suspeitar que, bem ou mal, ganharia a vida escrevendo.

Desde que me entendo como leitor, o que praticamente se confunde com “desde que me entendo por gente”, me incomoda chegar ao final de um texto, seja jornalístico, seja ficcional, com a sensação de que o autor não está mais ali, comigo. Achar que ele ligou o piloto automático, pendurou o paletó na cadeira, foi tomar café. Frustrante.

Qualquer um que já tenha ao menos tentado tourear palavras sabe quanta energia é consumida pela primeira frase, pelo primeiro parágrafo, pela primeira página. São os grandes responsáveis por ludibriar o leitor, por criar nele a necessidade artificial de ler aquele texto, de torná-lo o único a ser lido, a despeito de todas as evidências em contrário.

Em consequência, cada leitor coleta os inícios de textos que, com um beliscão na carne certa, criaram-lhe a urgência de ler o que vinha a seguir. Tais listas variam tanto quanto há leitores, mas é razoável esperar que incluam o Tolstói de “Anna Kariênina”: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.

Infelizmente, e não é o caso de Tolstói, menos atenção é devotada aos finais de texto. O leitor acompanha o autor, e este, por falta de palavras ou de histórias, às vezes dos dois, sai de fininho, pondo a perder o que podem ter sido cinco parágrafos ou 200, 400, 800 páginas de companhia prazerosa. Até onde o li, e não foi pouco, o jornalista Gabo nunca deixou o leitor com a impressão de que um romance fora “cortado pelo pé”.

“Aprender a viver”

Não tenho como dizer se Gabo foi o primeiro autor em quem notei que um final era tão importante, engenhoso e vigoroso quanto um início de texto. Na mesma época, pirei com o ex-goleiro Albert Camus, craque em pontapés iniciais (“O estrangeiro” e “O mito de Sísifo”), mas também autor de um dos gols mais belos num final (“A peste”).

A imagem do médico da cidade que levanta a quarentena, ouvindo os gritos de alegria da população, ciente de que, cedo ou tarde, novamente, “para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”, me dá calafrios na espinha até hoje. Camus não foi fumar na esquina.

Contudo, ainda que eventualmente possa não ter sido o primeirão, Gabo também foi me mostrando que jamais seria capaz de me abandonar antes do ponto final, livro após livro. Minha porta de entrada, claro, foi “Cem anos de solidão”, traduzido por Eliane Zagury. O protagonista Aureliano Buendía se entrincheirando em casa para ler os textos nos quais jazia escrito o seu destino, compreendendo que “não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que (…) acabasse de decifrar os pergaminhos (…) porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra” era o final adequadamente épico para uma leitura épica. Escrever daquele jeito dava sentido até ao Absurdo.

Gosto do final de “O amor nos tempos do cólera” e do final de “Memória de minhas putas tristes”, mas o meu favorito continua sendo, já lá se vão uns 30 anos, o final de “O outono do patriarca”, na tradução de Remy Gorga, filho. O triste ditador com uma idade indefinida entre 107 e 232 anos afinal encontra, danem-se os spoilers, o fim “alheio aos clamores das multidões frenéticas que se lançavam às ruas cantando os hinos de júbilo da notícia jubilosa de sua morte e alheio para sempre jamais às músicas de libertação e aos foguetes de regozijo e os sinos de glória que anunciavam ao mundo a boa nova de que o tempo incontável da eternidade havia por fim terminado”.

Linhas acima, no meu trecho favorito dentro desse meu final favorito, o patriarca “ao fim de tantos e tantos anos de ilusões estéreis havia começado a vislumbrar que não se vive, que porra, sobrevive-se, aprende-se muito tarde que até as vidas mais longas e úteis não chegam para nada mais que para aprender a viver (…)”. Depois de um troço desses, qualquer final de texto será patético. Então, melhor nem me dar ao trabalho.

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Arthur Dapieve é colunista do Globo