Em entrevista exclusiva ao jornal El Tiempo, da Colômbia, o ex-presidente dos Estados Unidos conta como nasceu a grande amizade com o escritor, diz que Gabo foi fundamental para melhorar a relação entre EUA e Cuba nos anos 1990 e que pretendia levantar o embargo contra a ilha no seu segundo mandato, um pedido recorrente do Nobel
O ex-presidente Bill Clinton lembra muito bem a primeira vez que entrou em contato com a obra do escritor colombiano Gabriel García Márquez.
Era 1972 e o futuro presidente dos Estados Unidos, então um desconhecido, estudava Direito na Universidade de Yale quando um amigo lhe recomendou que lesse “Cem Anos de Solidão”, a obra-prima do autor latino-americano, que dez anos depois ganharia o Prêmio Nobel de Literatura.
Ficou tão impressionado pelas primeiras páginas que não pôde fechar o livro até terminá-lo. Inclusive, relembra o ex-presidente, o levava para as aulas apesar dos olhares de reprovação de seus professores.
Muitos anos depois, já na Casa Branca, Clinton pôde conhecer a pessoa a quem desde então descreve como um de seus heróis literários.
Mesmo com posições ideológicas distintas, os dois construíram uma forte amizade que rendeu muitos encontros e várias cartas ao longo de quase duas décadas.
Em entrevista ao El Tiempo, Clinton recorda seu grande amigo e confessa que, se ainda não acabou de ler todos os seus livros, começou a reler “Cem anos de solidão” em homenagem à sua morte.
O ex-presidente também revela que o tema Cuba apareceu várias vezes nas suas conversas e que, graças a mediação de García Márquez, as delicadas relações entre Washington e Havana melhoraram substancialmente.
Por essas coisas do destino, e talvez algo de realismo mágico, o ex-presidente foi surpreendido pela notícia da morte de Gabriel García Márquez ao lado de outro colombiano.
Clinton estava em Nova York na metade de uma reunião com o presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Luís Alberto Moreno, quando a este chegou uma mensagem de texto com a notícia da morte de Gabo. Uma grande coincidência porque foi Moreno, justamente, o homem que durante anos serviu como ponte da relação dos dois.
“Era uma pessoa que eu realmente apreciava”, disse um Clinton visivelmente comovido.
O senhor sempre disse que García Márquez é um de seus escritores favoritos. Quando entrou em contato pela primeira vez com sua obra e qual foi sua impressão nesse momento?
Bill Clinton – Li “Cem anos de solidão” em 1972 quando era estudante de Direito na Universidade de Yale, em New Haven, Connecticut. Estava tão impressionado por esse livro que o levava para uma aula sobre impostos que pouco me interessava. Em lugar de escutar o professor, me dediquei a ler o romance. Marivin Chirlestein, meu professor nessa aula, um dia me perguntou o que eu estava lendo pois era óbvio que não estava prestando atenção. Mostrei-lhe o livro e disse que era o melhor romance escrito em qualquer língua desde a morte de William Faulkner. Sendo um jovem criado no sul dos Estados Unidos, foi o maior elogio que eu pude fazer. Acreditava nisso naquela época e continuo acreditando hoje.
Como começou sua amizade com Gabo e em quantas oportunidades se viram?
B.C. – Conheci Gabo em 1994 durante umas férias em Martha’s Vineyard (uma pequena ilha na costa nordeste dos Estados Unidos). Hillary, Chelsea e eu fomos convidados para um almoço na casa do romancista americano William Styron e Gabo era o hóspede de honra, junto com o grande escritor mexicano Carlos Fuentes. Nunca esquecerei quão amável Gabo foi com minha filha, que então tinha 14 anos e já lera três livros seus. Ele perguntou a Chelsea, meio cético, se os tinha entendido e tiveram uma longa conversa sobre suas obras e a literatura em geral. Quando finalmente começamos a conversar, falamos de política e nos envolvemos numa discussão sobre o embargo a Cuba. Desfrutei cada minuto dessa conversa. Um tempo depois, sua afilhada, Patricia Cepeda, entregou os livros a Chelsea e uma cópia autografada da primeira edição em inglês de “Cem anos de solidão” para mim. Desde então nos mantivemos em contato ao longo dos anos e, depois que deixei a Casa Branca, tentei encontrá-lo todas as vezes em que estávamos os dois na Colômbia.
Como foi sua relação política com Gabo? Ele era também amigo próximo de Fidel Castro e sempre disse que tratou de aproximar Cuba e Estados Unidos quando o senhor era presidente.
B.C. – Gabo adorava brincar dizendo que era a única pessoa que era amigo de ambos. Gabo sempre expressou, de maneira contundente, sua opinião sobre a necessidade de levantar o embargo. Eu lhe expliquei que não podia levantar o embargo, mas que apoiava o Ato para melhorar a Democracia em Cuba, que dava autoridade ao presidente dos EUA para melhorar as relações entre os dois países em troca de movimentos rumo a mais democracia e liberdade na ilha. Nessa época, havia um êxodo maciço de cubanos para os Estados Unidos, similar ao incidente de Mariel em 1980. Eu pedi a Gabo que dissesse a Castro que, se seguisse o influxo descontrolado de cubanos para a costa americana, minha resposta seria muito diferente daquela do presidente Jimmy Carter nos anos 1980. Não muito depois, Estados Unidos e Cuba chegaram a um acordo em que Castro se comprometeu a frear o êxodo e nós prometemos acolher 20 mil cubanos por ano através do processo regular, algo que ambas as partes honraram até o fim da minha presidência. Eu pensei que poderia terminar com o embargo durante meu segundo mandato. Havia muito interesse em fazê-lo, inclusive da comunidade cubano-americana em Miami, até que derrubaram os aviões da “Hermanos al Rescate” (uma organização criada por cubanos exilados em Miami) em aberta violação das leis internacionais. Neste momento, o Congresso aprovou uma lei que aumentou as sanções e eliminou o poder que o presidente tinha para acabar com o embargo sem autorização do Congresso. As coisas parecem estar se movendo novamente rumo à reconciliação e creio que se poderia avançar ainda mais se Raúl Castro liberasse o americano Alan Gross, preso de maneira equivocada.
Quando foi a última vez que viu o escritor?
B.C. – Vi Gabo e Mercedes em sua casa de Cartagena em maio do ano passado, quando estive na Colômbia com meu amigo e sócio canadense Frank Giustra, para ver o trabalho que fazemos no apoio a pequenos agricultores, pescadores, empresários e estudantes em Bogotá e Cartagena. Pude ver que os anos já lhe pesavam, mas estava animado e foi uma grande visita.
Na sua opinião, o que Gabriel García Márquez significa para o mundo da literatura?
B.C. – Gabo escreveu livros sábios e maravilhosos. Apresentou o realismo mágico a milhões de pessoas, utilizando a magia de sua imaginação para iluminar a realidade compartilhada por todos: alegria e dor, amor e perda, nobreza e impulsos baixos. Seu trabalho aumentou o interesse pela literatura latino-americana ao redor do mundo, o que ajudou outros autores latino-americanos a encontrar novos públicos. Sua importância foi enorme na criação de uma cultura literária global. Para o público de língua espanhola, Gabo foi um fenômeno.
Era visto igualmente pelos leitores de língua inglesa?
B.C. – Sim. Gabo era em essência um contador de histórias, um dos melhores de todos os tempos. Podia nos fazer chorar, rir sem parar, xingar de raiva e perder o fôlego ante o maravilhoso. Impactou pessoas de todo o planeta.
Quais são seus livros preferidos de García Márquez? O senhor leu todos?
B.C. – “Cem anos de solidão”, “O outono do patriarca”, “O general em seu labirinto”, “Do amor e outros demônios”, “Notícia de um sequestro” e “Viver para contar”. Ainda falta uns três, mas vou lê-los em breve. Em sua homenagem, comecei a ler novamente “Cem anos de solidão”.
Por que Gabo foi tão importante para o senhor?
B.C. – Porque seus livros e sua amizade foram presentes preciosos em minha vida. Porque compartilhávamos o amor pela democracia e a liberdade, o ódio pelo poder brutal e arbitrário e a preocupação com a vida e o bem-estar da gente comum. Gabo marchava no ritmo de seu próprio tambor e dedicou sua vida a criar memórias que nos afetarão para sempre.
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Sergio Gómez é correspondente do El Tiempo (Bogotá) em Washington