Um dia levei um pito de João Ubaldo. Logo dele, uma figura querida, irreverente, de que eu tanto gostava e admirava. Tudo por conta de um caderno especial sobre os 80 anos de Rubem Fonseca. O próprio Rubem sugeriu, junto com os filhos, entrevistar seu amigo Ubaldo que, como sempre, foi gentil e atencioso em me atender.
Falamos longamente sobre Fonseca. Mas o problema é que eu ouvi dezenas de pessoas, e o caderno acabou dividido entre Fonseca e Dalton Trevisan, que também fazia 80 anos. O perfil que escrevi foi reduzido a pouco mais de uma página, e a cada entrevistado coube apenas uma pequena declaração. De Ubaldo pesquei uma frase sobre o lado gozador de Fonseca, conhecido de todos os que convivem de perto, mas desconhecido do grande público: “É uma grande companhia. Simpático, culto, espirituoso, brincalhão. Mente descaradamente! Chega a disfarçar a voz no telefone.”
Na minha cabeça, estava claro que se tratava de uma brincadeira. Até porque esse lado gaiato do recluso escritor era também ressaltado por outros entrevistados. Ubaldo não interpretou assim. Enviou-me uma mensagem sentida, dizendo entender por que Fonseca não falava com jornalistas. “Caro Mauro (…) De tudo que eu disse a você sobre ele, só saiu, e em destaque, que ele é mentiroso. Não está certo, não é justo, não é fiel, não representa meus sentimentos ou pensamentos em relação a ele.” Fazia mais alguns comentários e por fim encerrava: “Quem não dá mais entrevista agora sou eu. Abraços de João Ubaldo.”
Fiquei arrasado. Expliquei que achava que dava para ver que era uma brincadeira, já que tanto um como o outro são grandes gozadores. Desculpei-me falando que, como diz Verissimo, se o leitor não compreende ironia a culpa é de quem escreve. E prometi desfazer um possível mal entendido com Rubem Fonseca.
Figura generosa
Mas ele logo minimizou a questão. Numa nova mensagem, pouco depois, contou que compreendia meus argumentos, que falara com Fonseca e que correra tudo certo. E me tranquilizou, dizendo que não estava nem “zangado, nem magoado, nem reclamando”. “Está tudo bem. Esqueçamos, um abraço amigo, de João Ubaldo.”
Como de fato esqueceu e relevou. Tanto que, anos depois, ao procurá-lo para uma reportagem de capa, ele me atendeu com o carinho, a generosidade e a informalidade habituais. Quando saiu a matéria (foto de Leonardo Aversa), me enviou um e-mail gentil: “Quero agradecer-lhe vivamente, saiu tudo muito bem e sem distorções. Muita gente já me falou que gostou. Muito obrigado e um abraço amigo, de João Ubaldo.”
Na época, ele me disse que seu avô morrera com 73 anos, de trombose. “Meu pai era encucado com isso, vivia repetindo: ‘Eu também vou morrer de trombose com 73.’” E, de fato, o pai de Ubaldo tinha 73 anos quando caiu, bateu com a cabeça, teve uma trombose e morreu. Ubaldo, que estava na ocasião da entrevista com 70 anos, contou que era natural que o tema rondasse sua cabeça: “Depois de uma certa idade, a morte começa a mostrar sua cara, o sujeito começa a ser frequentado por ela.” Mas foi um enorme baque para todos. Por uma dessas coincidências trágicas, Ubaldo também morreu aos 73 anos (de embolia pulmonar). Fica a lembrança de uma figura adorável, generosa, acessível e extremamente talentosa.
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Mauro Ventura, do Globo