Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um amigo perfeito

Tivemos uma amizade fulminante. João Ubaldo costumava dizer que é raro fazer amigos depois de certa idade. Às vésperas dos 40, eu ainda não sabia. Conquistamos uma intimidade rara. Talvez coisa de outras encadernações. Saíamos para beber e conversar algumas vezes por semana, com ou sem pretexto. Concordávamos a respeito de quase tudo. Quando não, bastava trocar dois dedos de prosa.

Tínhamos urgência de conversar sobre todos os assuntos. Certo dia, no apartamento dele, escalamos a Seleção do Mal. Começando por Torquemada, o Inquisidor espanhol, no gol. Para a defesa, sugeri dois zagueiros botinudos, de cujos nomes me esqueci. Para a lateral esquerda, João sugeriu Mao Tsé Tung. Discordei: “Mas o Mao é nosso!” Ele argumentou: “Dezenas de milhões de mortos?” E restabeleceu-se a concórdia. O Mao tornou-se titular absoluto.

No meio de campo, escalamos Pol Pot, Bokassa e mais um ditadorzinho de segunda classe. No ataque, Hitler na ponta-esquerda, Calígula como centro-avante, para assegurar a criatividade, e Stálin na ponta esquerda. Desta vez, nem discuti sua coloração ideológica. Só faltava escalar o número 10, o cérebro do time. Não me lembro qual de nós sugeriu o nome terrível: o Marquês de Sade.

Ficamos os dois trêmulos, aterrorizados com o poder de fogo da seleção. Felizmente, Berenice, a musa e patroa dele, chegou do consultório e percebeu o nosso drama: “Por que essa cara horrível, meninos?” “Porque acabamos de escalar a Seleção do Mal.” E ela, com a calma dos sábios, decretou: “Pois escalem a do Bem.”

Esperançosos, escalamos Jesus Cristo no gol. De braços abertos. Na lateral direita, São Francisco de Assis; na esquerda, Buda. Não me lembro qual era o meio de campo, mas era tudo gente boa: José de Anchieta, volante moderno, capaz de apoiar o ataque e marcar gol. Se não me falha a memória, o time tinha Ghandi, Zoroastro, Tomás de Aquino. Só faltava o camisa 10. Quando nos ocorreu o nome de William Shakespeare, ficamos aliviados.

Arte eterna

Ubaldo era o amigo mais generoso. Adorava dar presentes. Considerava canivete suíço uma das maiores invenções de todos os tempos. E os distribuía às dezenas, dizendo: “Dinheiro pouco eu tenho muito.” A mim me cumulou sempre de lembranças. Mas, no dia seguinte, telefonava para cobrar. Por exemplo: “Já usou o binóculo que eu lhe dei?” Eu explicava que meu escritório fica diante de uma pedra, não havia nada o que espiar. E ele, com autoridade, insistia: “Pois vá até a rua e use o binóculo que eu lhe dei!” E insistia de novo até que eu cumprisse o meu dever de gratidão e lhe relatasse: “Vi um homem passando numa bicicleta.” E ele, exultante: “Viu como é bom o binóculo que eu lhe dei?”

Certa vez trouxe da Alemanha uma caneta branca. Passei a guardá-la como um talismã. Ele trouxe para si mesmo uma caneta igualzinha, só que azul. Dez anos mais tarde, durante uma sessão de trabalho, confidenciamos que as duas canetas haviam se tornado amuletos, sem os quais não nos sentiríamos capazes de escrever. Até hoje a mantenho sobre a escrivaninha, com duas cargas de reserva.

Fui por duas vezes visitá-lo em Itaparica, sua ilha natal. A primeira, para escrevermos uma série de TV. Bolávamos as histórias estirados em duas redes, na casa dele, com grande esforço. Segundo Ubaldo, tanto o itaparicano como os visitantes sofrem os efeitos da radiatividade local, que provoca uma preguiça quase invencível. Felizmente, João Ubaldo a venceu para escrever “Viva o Povo Brasileiro”. Da última vez foi em janeiro, mês de seu aniversário. Uma festa.

Assim como a Rua do Ouvidor ganhou Machado de Assis, Itaparica ganhou o seu cronista. As pequenas façanhas de sua gente se tornaram patrimônio do Brasil e muitos de seus heróis acham que cometeram de fato as peripécias que ele inventou na ficção. Mas tudo isso é arte, pertence à eternidade e será contado em minúcias pelos cronistas do futuro.

Um poema

De vez em quando, o João tinha surtos poéticos e escrevia poemas em inglês, língua que ele conhecia como raros nativos, mas tinha vergonha de mostrá-los e costumava destruí-los logo depois de escrevê-los. Certa vez, ainda no tempo do fax, ele me enviou um poema, que traduzi quase instantaneamente. Deste, felizmente, o João se afeiçoou e de vez em quando me pedia que o repetisse. E o repito aqui, porque parece um autorretrato desse que, além de um ser um dos mais complexos e deslumbrantes brasileiros de todas as eras, era também um amigo perfeito:

Até a morte eu me atormentarei

Pelo que descobri e não encontrei,

Pelo que, pascaliano como sou,

Eu compreendi, e ainda assim maldigo.

Sou o idiota mais perfeito, aliás,

Por feito mais de carne que de gás.

É esse o fado que me leva adiante,

Num mundo para o qual não sou prestante.

Tudo o que tenho as mulheres me deram,

Consolação, razão para existir.

Benditas Berenices, Beneditas.

Também sejam benditos meus amigos,

Pois gosto deles, tenham longa vida,

E até eu mesmo que não a mereço,

Mas que a observo e sei qual é seu preço.

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Geraldo Carneiro é poeta e escritor