Não é fácil dar conta da sensação – que é sobretudo de um certo vazio, mas eu não estaria exagerando se acrescentasse à mistura notas de luto e desamparo – provocada pela morte de Ariano Suassuna (1927-2014). Não que minha impressão tenha algo de original: é a mesma externada por muita gente em todo o país neste funesto mês de julho que já havia levado João Ubaldo, e principalmente por quem teve algum contato pessoal com o homem.
Amigos confiáveis me dizem que Ariano era uma dessas criaturas iluminadas que despejam sabedoria e bondade sobre tudo e todos à sua volta. Acredito. No entanto, como o máximo de proximidade que tive com ele foi estar na plateia de uma de suas famosas “aulas-espetáculo”, a principal impressão que o autor de “Auto da Compadecida” sempre me causou foi a de um adversário no campo das ideias sobre arte e cultura. Seu agudo senso de humor suavizava, mas não chegava a desfazer o antagonismo.
Afirmar que ele era um nacionalista e um conservador diz pouco. O sujeito era ultranacionalista e ultraconservador, uma espécie de versão nordestina do crítico e pesquisador musical José Ramos Tinhorão, inimigo do internacionalismo da bossa-nova. Como Tinhorão, Ariano Suassuna calcava sua defesa da arte popular nacional no mergulho em fontes primárias, preservadas em uma memória prodigiosa. O valor de tal trabalho, que pode ser visto como uma continuação da cruzada enciclopedística de Mário de Andrade, fala por si.
O problema era aquilo que ele fazia desse patrimônio como pensador da cultura, as lições que tirava daí e que desembocaram em seu “Movimento Armorial”. Tratava-se de um código estrito, severo, arcano e fechado, que me excluía por completo ou assim me parecia. O apego do escritor a uma frase como “o mundo se divide entre os que concordam comigo e os equivocados” nunca ajudou a desfazer essa impressão.
Não só não sou nordestino como pertenço à primeira geração brasileira que foi exposta à TV desde o berço. Fui criado desde muito pequeno à base de doses cavalares e necessariamente heterogêneas de produtos da indústria cultural, que Ariano desprezava como rasos e submetidos a uma dinâmica imperialista. Não é difícil lhe dar razão em tese, dizendo: “Ah, como seria bom se tivéssemos conservado uma maior fidelidade às nossas raízes – se ao menos não tivesse havido o rádio, o disco, o cinema, a TV, a internet!”.
Ocorre que, se você carrega essa mistureba na alma, ela passa a defini-lo. Aquele National Kid vira-lata da infância rivaliza com o João Grilo lido na juventude em seu panteão de heróis, Keith Jarrett e Ernesto Nazareth tocam piano a quatro mãos, Guimarães Rosa troca ideias com J.R.R. Tolkien: negar esse liquidificador de influências não seria apenas reacionário, mas um ato de autoanulação. Fazer passeata contra a guitarra elétrica já era patético em 1967, imagine no século XXI.
Assim eu pensava e ainda penso, mas o sentimento de orfandade deixado pela morte de Ariano Suassuna parece exigir um passo além da velha dicotomia nacionalismo x internacionalismo. Desconfio que andei errado ao supor que o “Romance d’A Pedra do Reino”, um dos maiores romances brasileiros do século XX, fosse uma obra-prima apesar do ideário estético conservador do homem que o escreveu. Ou melhor: que chamar de conservador e reacionário um escritor capaz de tamanha explosão criativa e propositiva é no mínimo reducionista, pois como seria possível conservar algo que nunca existiu fora de sua imaginação delirante, uma majestosa visão de país erguida no horizonte como uma miragem?
Nesse oceano de geleia que é a cultura globalizada contemporânea, a perda de Ariano Suassuna – e de João Ubaldo – torna o Brasil indiscutivelmente mais burro, mais amorfo e mais desgovernado. Nosso lastro cultural não é tão grande assim para que a gente o saia dispensando de forma perdulária. De repente me ocorre que tal perda dupla ter vindo no mês do cataclísmico 7 a 1 pode não ser mera coincidência, pensamento aterrador que me leva a começar imediatamente a releitura de “A Pedra do Reino”. A trilha sonora de Keith Jarrett é casual, mas até que funciona – espero que Ariano compreenda.
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Sérgio Rodrigues, de Veja.com