Suja, total e mundial. São diversas as formas como a guerra que destruiu impérios, rearranjou geopoliticamente a Europa e alçou os Estados Unidos à posição de potência mundial foi denominada durante as últimas décadas. Prestes a completar cem anos de seu início, na próxima segunda-feira, o conflito ainda é constantemente revisitado por historiadores. Novas visões foram formadas, como a análise de que a Inglaterra e a França saíram do confronto mais fracas do que a Alemanha, contrariando a tese popular de que a fragilidade alemã teria sido uma das causas da Segunda Guerra. Alguns afirmam até que a percepção consagrada do historiador britânico Eric Hobsbawm, de que o episódio marcaria o início do “breve século XX”, estaria equivocada.
– A narrativa tradicional sustenta que a derrotada Alemanha, submetida a um duro tratado de paz, estava muito mais fraca depois de 1918 do que antes de 1914. Mas é relativo. A guerra enfraqueceu a Grã-Bretanha e a França muito mais do que enfraqueceu a Alemanha – afirma o historiador Lawrence Sondhaus, autor do livro “A Primeira Guerra Mundial: História completa”. – A combinação da guerra e da revolução também deixou a Rússia muito mais fraca do que tinha sido em 1914. Mesmo antes da ascensão de Hitler e dos nazistas, a Alemanha já estava em uma posição para fazer um retorno.
A importância do conflito para o redesenho político do Velho Continente e para a mudança nas forças econômicas, entretanto, é uma constante nas interpretações.
– A Primeira Guerra Mundial transformou o sistema político da Europa. Em 1914, o continente ainda tinha monarquias imperiais significativas (Alemanha, Rússia, Áustria-Hungria) e apenas duas repúblicas (França e, desde 1910, Portugal). Em 1919, as monarquias autoritárias foram embora, havia 11 repúblicas, e as monarquias constitucionais da Grã-Bretanha e Itália foram as únicas não repúblicas entre as cinco principais potências – diz o historiador.
Disputa de nacionalismos nas trincheiras
Com opinião semelhante, Daniel Aarão Reis, professor de História da Universidade Federal Fluminense, afirma que os nacionalismos foram essenciais para a eclosão do conflito que se alastraria em trincheiras insalubres pela Europa:
– Os nacionalismos apareceram como forças decisivas para o surgimento e o desdobramento da Primeira Grande Guerra e também para explicar a desagregação dos “velhos” impérios.
A disputa entre a Tríplice Aliança, formada inicialmente por Itália (que iria para o grupo adversário em 1915), Império Austro-húngaro e Alemanha; e a Tríplice Entente, formada com a participação de França, Rússia e Reino Unido, com os Estados Unidos entrando nos meses finais do conflito, fez com que as potências e suas respectivas colônias mobilizassem 70 milhões de soldados para a guerra. A globalização do conflito e suas consequências levaram Hobsbawm a classificar a Primeira Guerra Mundial, junto com a Revolução Russa, como o início do “breve século XX”. Mas o conceito, lançado há 23 anos, está sendo revisto. Há espaço para novas conceitualizações, avalia Aarão Reis.
– Hobsbawm talvez tenha incorrido num erro comum aos historiadores do século XX: eles superdimensionaram a Revolução Russa e o socialismo soviético como alternativas radicais ao capitalismo. Depois da desagregação da União Soviética, talvez sejam abertos horizontes para novas conceituações – afirma o historiador.
O nascimento de uma potência
Longe dos perigos dos campos de batalha, os Estados Unidos foram os maiores vitoriosos da guerra. O país, que só entrou no conflito após a saída da Rússia, como forma de não desestabilizar as forças da Tríplice Entente, não teve batalhas em seu território nem fortes impactos na sua economia. Com o fim da guerra e o enfraquecimento das potências britânica, francesa e alemã, além da queda dos impérios, os americanos tiveram todos os meios para se tornarem o país mais poderoso do mundo.
– Em termos globais, o resultado mais significativo foi o surgimento dos EUA como principal potência econômica do mundo. Depois de 1919, a opinião pública no país voltou-se para o isolacionismo – afirma Sondhaus.
Os desdobramentos da guerra também trariam novos nomes. Líderes formados nas fileiras políticas, diplomáticas e militares deste cenário seriam personagens principais da Segunda Guerra. Stálin, Hitler, Mussolini, Charles de Gaulle e Churchill são exemplos de líderes e chefes de Estado cujas formações estão ligadas ao episódio.
– Eu acredito que a Primeira Guerra Mundial foi o precursor necessário para o maior derramamento de sangue que se seguiu no resto do século. A guerra foi também a crítica experiência formativa para a maioria dos líderes da Segunda Guerra Mundial – analisa Sondhaus.
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Raphael Kapa, do Globo