Os peixinhos nadavam por entre as nossas pernas. Estávamos no mar em frente à casa do José Paulo e da Maria Lecticia Cavalcanti, Praia do Touquinho, Lagoa Azul, Pernambuco, Brasil, América do Sul, Terra, Via Láctea, universo, com água pela cintura. Quem éramos nós? Millôr e Cora, Gravatá, Lucia, eu e peixinhos anônimos. Zé Paulinho e Maria Lecticia tinham providenciado tudo para que o prazer dos seus hóspedes fosse completo: sol decididamente pernambucano, céu e mar de um azul irretocável, uma mesa flutuante com guarda-sol em cima coberta de coisinhas para comer e bebidinhas para beber. A um sinal do Zé Paulinho, vinham mais camarão, mais marisco, mais caipirinha, mais pássaros, menos pássaros, mais brisa, menos brisa – e de repente, descendo na nossa direção pela praia como uma aparição, um convidado convocado pelos Cavalcanti para que o dia fosse mais que perfeito: o Ariano Suassuna. De calção de banho! Ele entrou no mar, e os peixinhos continuaram nadando entre as nossas pernas, sem nenhuma curiosidade intelectual. Eles só estavam ali para pegar os restos da mesa flutuante, alheios ao grande momento, como se um encontro de Millôr Fernandes e Ariano Suassuna com água pela cintura acontecesse todos os dias. Nós, ao contrario dos peixinhos, nos encharcávamos do momento. Eu, chupando um picolé de mangaba – eu mencionei que também havia picolés de mangaba? – finalmente descobria o sentido da palavra “embasbacado”. Depois do encontro no mar, um almoço magnifico – não fosse comandado pela dona Maria Lecticia. E o dia mais que perfeito terminou com uma visita a um terreno próximo onde o Zé Paulinho criava bodes. Nosso anfitrião queria nos mostrar um animal que importara da Africa do Sul e que, de tão antipático e posudo, recebera do Suassuna o apelido de “Somebode”.
Show
Uma aula do Suassuna era um show, um show do Suassuna era uma aula. Além de produzir ele mesmo boa parte da cultura contemporânea da sua terra, Suassuna conhecia como ninguém a História (e as histórias), as artes e as tradições do Nordeste, esse outro mundo dentro do Brasil, e lutava para mantê-las vivas. Tinha uma memória fantástica, poemas enormes decorados inteiros para qualquer ocasião, e era notável sua capacidade de, aparentemente, se perder em digressões quando falava sobre determinado assunto, a ponto de criar uma expectativa nervosa na plateia – será que ele volta para o assunto ou não volta? – e retomar o que estava dizendo do ponto exato da digressão, para alivio geral. O Brasil perdeu um tesouro.
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Luis Fernando Verissimo é jornalista e escritor