Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

‘Pif-Paf’ em Portugal contra a censura no Brasil

Eis o que quase nenhum brasileiro sabe e muito poucos portugueses recordam: durante quase uma década, num arco que vai de setembro de 1964 a abril de 1974, Millôr Fernandes foi o grande matchmaker da relação de humor Brasil-Portugal. Sempre às quartas-feiras, e sempre na página 17, Millôr publicou uma página semanal de textos e desenhos humorísticos no vespertino português de maior circulação naquele período,o “Diário Popular”, num total de quase 500 números. Chamava-se “O Pif-Paf”.

O “Pif-Paf” começou por ser uma seção na revista brasileira “O Cruzeiro”, produzida por Millôr sob o pseudônimo Emmanuel Vão Gôgo, juntamente com o ilustrador Péricles Maranhão, entre 1945 e 1963 (a partir de 1955, Millôr assumiu sozinho a produção). Ferreira Fernandes, 40 anos de jornalismo, autor de uma crônica diária no “Diário de Notícias”, vivia em Luanda, Angola, nesse período, onde a sua mãe comprava duas revistas brasileiras, “Manchete” e “Cruzeiro”:

– Foram o meu curso superior de jornalismo, que tirei até os oito anos. Mas foi mesmo. Em reportagens, em colunistas e em humor também. O que o Millôr escrevia no “Cruzeiro” era um português novíssimo para a escrita jornalística. Era irônico, imaginativo, saltava do carcan [opressão, em francês] do nosso jornalismo.

Millôr é demitido pela direção do “Cruzeiro” num editorial de primeira página em outubro de 1963, após 25 anos na revista. Em maio de 1964, lança “Pif-Paf”, uma publicação satírica e pioneira na imprensa alternativa brasileira, que dura apenas três meses e oito números, apesar da sua popularidade, uma existência abreviada pela censura da ditadura militar, que manda fechar a revista.

‘Salvaram minha vida’

O primeiro número do “Pif-Paf” no “Diário Popular” é publicado apenas um mês depois, a 30 de setembro de 1964 – anunciado na primeira página do jornal: “Não deixe de ler hoje na 17ª página a famosa secção humorística PIF-PAF (Cada exemplar é um número e cada número é exemplar). De Millôr Fernandes (Um escritor sem estilo)”.

Numa entrevista aos “Cadernos de Literatura Brasileira” em julho de 2003, Millôr Fernandes contou que o convite do “Diário Popular” o salvou – é verdade que entre 1964 e 1967 praticamente só escreveu teatro, entre peças originais, traduções e adaptações, no Brasil. “Eu tenho a maior simpatia por Portugal. Até porque eles me salvaram a vida. Depois de 1964, quando saí do ‘Cruzeiro’, fiquei na miséria, devendo dinheiro, ainda que eticamente me sentisse aliviado. Um dia, chego aqui, e vocês não vão acreditar, tinha uma cartinha embaixo da porta. Abri, era de Portugal, do ‘Diário Popular’. Estavam me oferecendo fazer uma colaboração e ganhar o equivalente a mil dólares por mês. O ‘Diário’ era o jornal mais lido do país, vendia 180 mil por dia. Pedi 5.000, acabei fechando por 3.000 dólares. Aí eu peguei a prancheta, fiquei até de madrugada, mandei três desenhos para lá. Uma semana depois, chegam aqui 2.000 dólares; na semana seguinte, mais 2.000 dólares e, na outra, mais 2.000. Mandaram 6.000 dólares. Salvaram a minha vida naquele momento.”

Baptista-Bastos (ou BB), 81 anos, 60 de jornalismo, clama ter sido ele quem sugeriu o nome de Millôr depois de um dos administradores do “Diário Popular” constatar que faltava humor nas páginas do jornal. (O mesmo patrão teria tentado contratar o famoso repórter do “Cruzeiro”, David Nasser, segundo BB. “O Nasser chegou a cá vir, mas estava tão bêbado que não houve contrato possível”, conta.) BB conhecera Millôr em março de 1964, numa viagem ao Rio, na companhia do humorista e ator português Raúl Solnado, que também viria a se tornar amigo do brasileiro.

Críticas indiretas à ditadura

Censurado pela ditadura brasileira, Millôr destila o seu humor satírico, subversivo, marialva e negro com regularidade semanal, durante dez anos, no jornal português de maior circulação, e em plena ditadura salazarista. O humorista brasileiro gostava de contar um episódio apócrifo, que parece um daqueles paradoxos genuinamente pif-pafianos. O ditador português, Salazar, terá uma vez comentado sua página no “Diário Popular” com um dos seus assessores, dizendo: “Este tem piada, pena que escreva tão mal o português”.

Baptista-Bastos diz que Millôr mandava versões alternativas, para o caso de a censura portuguesa aplicar cortes. Ferreira Fernandes nota que nesse período Millôr já acumulara uma vasta experiência em jornais:

– Ele entra para os jornais muito cedo, nos anos 1940. Nos anos 1960, já é um macaco velho e sabe o que está a fazer. Ele não fala da guerra colonial portuguesa. Falará de outros imperialismos, em particular o americano, e isso não incomodaria o Estado Novo, que era bastante antiamericano também.

É possível que a ditadura portuguesa tenha achado que não era nada com ela, quando Millôr escrevia parábolas sobre soberanos que desconhecem ser o homem mais feio do mundo por falta de espelho.

– Por que é que ele conseguia fazer o “Pif-Paf” cá? Porque não fazia referências a Portugal e não falava na ditadura brasileira – diz Jorge Almeida Fernandes, jornalista do “Público”. – Era tudo indireto, tudo subliminar, e era isso que dava gozo.

Último número na véspera da revolução

O último número do “Pif-Paf” no “Diário Popular” é publicado a 24 de abril de 1974 – véspera da revolução que derrubou o regime ditatorial em Portugal. Quem sabe o que aconteceu? Resta a especulação.

– Pode ter sido uma questão contabilística – sugere Ferreira Fernandes. – Ele ganharia aquilo que merecia ganhar? Não. Mas provavelmente pensou-se que era muito e deixou-se cair.

E também porque, numa altura em que as redações dos jornais se tornam ultrapolitizadas e são dominadas pela esquerda, a geopolítica milloriana não seria propriamente prezada.

– Ele é antiamericano, como é anticomunista, goza com a União Soviética e com a China – resume Ferreira Fernandes. – Pronto, chego à conclusão: há crimes do 25 de abril. Temos aí um – diz, rindo-se.

Em 2004, João Pereira Coutinho organizou a única antologia portuguesa dedicada à produção do “Pif-Paf” no “Diário Popular”. É uma espécie de best of em 190 páginas, que integrou uma coleção de livros vendidos com o semanário “Independente”, entretanto extinto. O livro nunca esteve nas livrarias e hoje só é possível comprá-lo em segunda mão. De resto, só dois outros livros de Millôr foram publicados em Portugal e não estão mais disponíveis: a peça de teatro “Computa, computador, computa” (Editorial Futura, 1973) e “Confúcio disse” (Pergaminho, 1993). As edições brasileiras estão ausentes das livrarias.

– Nós ignoramos muito o Brasil, que nos devolve com uma ignorância completa – diz Ferreira Fernandes. – Esse é um drama nosso.

Pena que o Millôr não esteja mais aí para nos fazer rir disso.

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Kathleen Gomes é jornalista do diário português Público. Esta é uma versão editada de um texto disponível no Público e na edição especial da revista Serrote que será distribuída na Flip