Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Duendes nefastos

Robin Williams fez este comentário, em 2009, quando ainda se via como um sobrevivente de sua doença, a depressão. Estava sendo otimista. Tapei o nariz e fiquei offline depois das primeiras horas do choque com seu suicídio, quando a especulação era ainda sobre um relapso da dependência de drogas e não a depressão resultante do estágio inicial de Mal de Alzheimer. Não que qualquer um de nós possa ainda saber com certeza o alinhamento de fatores que levou o ator a se enforcar em casa na segunda-feira passada. Deixamos para trás o tempo em que cada um tinha direito à sua opinião e vivemos sob a ditadura em que cada um tem direito aos seus fatos.

Caí fora da internet na noite da segunda-feira porque um certo tipo de baixaria familiar na mídia social – a necrofilia digital – estava me embrulhando o estômago. A primeira reação de quem tenha tido experiência pessoal ou entre parentes com depressão grave, dependência de drogas e suicídio (um vasto segmento demográfico, suspeito) é uma sensação de um luto conhecido. Mas há exceções, claro, e espero que não me considerem menos humana na reação a outras mortes no mesmo dia: um comandante do Estado Islâmico, o mais cruel e niilista movimento radical do nosso tempo, estava dando aula a um grupo de recrutas quando detonou, sem querer, um colete suicida e morreu junto com 21 futuros assassinos. Não comecei a dançar de alegria, senti alívio. Mas, assim que saiu a notícia da morte trágica de Williams, fui confirmando meu pressentimento.

Internautas comemoraram sua partida porque, em sua carreira recente, ele fazia maus filmes. Pare e pense. Quando pessoas articuladas e habitualmente civilizadas consideram um punhado de filmes piegas motivo para celebrar a morte de seu protagonista, é hora de não demonstrar tanto espanto com o planeta que também fez nascer o Estado Islâmico. Além da demonstração de pobreza moral, os comentários dão uma medida de como a mídia social amplia o mais baixo instinto narcisista: morreu um artista popular e querido mas a notícia urgente agora é, ele me irritou com um papel detestável. Nem é preciso lembrar que Williams tinha mais gênio cômico no seu dedo mindinho do que a maioria destes tolos conseguirá demonstrar em toda sua carreira.

Interesses comerciais

Esperei passar a baixaria inicial e, quando voltei ao Twitter, descobri que é sempre prematuro decretar o fundo do poço. Zelda, a filha atriz de Williams, 25 anos, foi submetida a um ritual inacreditável de crueldade por dois trolls no Twitter, em postagens cujos detalhes não vou enumerar para não oferecer publicidade. Depois de pedir ajuda em vão no próprio microblog, ela fechou suas várias contas na mídia social. Sob intensa artilharia crítica, o Twitter afinal anunciou uma “revisão” de suas regras sobre assédio e intimidação. Mais do que o Facebook, o Twitter se torna uma arma na mão de desocupados, doentes mentais e psicopatas. E há uma predominância de mulheres e minorias raciais entre os mais perseguidos, confirma Jennifer Pozner, diretora do grupo Woman in Media and News e alvo, em 2009, da campanha implacável de um homem que inventava sucessivas novas identidades no microblog.

Ameaças de estupro e xingamentos raciais são rotina e não discriminam entre anônimos ou famosos. Dito isso, admito que o Twitter hoje é minha principal fonte de informação imediata qualificada porque, nas mídias da Europa e dos EUA, muitos jornalistas sérios e acadêmicos não têm paciência para a puerilidade do Facebook. Meu único recurso é bloquear seguidores agressivos mas internautas mais proeminentes sabem que isso está longe de ser uma solução.

Jeff Jarvis, conhecido e mordaz professor de jornalismo da New York University, jogou as mãos para cima na semana passada: “Que sociedade estamos construindo?”, perguntou Jarvis, num artigo em que relata seu embate com um troll que criou uma identidade com seu nome no Twitter e, por esporte, decidiu atacar uma pessoa relativamente conhecida e admirada pelo professor. O agredido não sabia que o agressor era um impostor e Jarvis teve que se lançar a uma reparação pelo que não fez. O que, convenhamos, não é grave, comparado à brutalidade gratuita dirigida contra a filha de Robin Williams.

Há tecnologia para filtrar a interação na mídia social. E há o interesse comercial de companhias com mais usuários do que a maioria dos países populosos têm de habitantes. Que comunidade digital querem construir?

******

Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York