Se houve um gênero literário em que o Brasil se notabilizou nas três últimas décadas foi no da biografia histórica. Desde a primeira edição de Morte no Paraíso – a tragédia de Stefan Zweig (1981), de Alberto Dines, marco fundador dessa era, o leitor brasileiro tem visto a si, à sua história e convivido com personagens de complexidade shakespeariana – ou balzaquiana – em obras feitas com rigor historiográfico, beleza estilística, riqueza de imagens fotográficas e força narrativa que raras vezes se encontra em nossa ficção do mesmo período.
O exemplo recente dessa combinação e da notabilidade brasileira no gênero, incompreendido e contestado no país, é a trilogia Getúlio Vargas, de Lira Neto, cujo último tomo fora publicado recentemente pela Companhia das Letras.
Compreendendo os anos de 1945 a 1954, do exílio em São Borja ao suicídio, o último volume da biografia pode ser descrito como um thriller político shakespeariano. Ao longo de 351 páginas vemos a grandeza ser solapada pela pequenez, como em Rei Lear; a falta de escrúpulos na busca pelo poder, como em Ricardo III; a História atravessar a vida doméstica, como em Antônio e Cleópatra; o interesse se sobrepor à lealdade, como em Otelo; a morte como única forma de redenção, como em Hamlet, a tragédia da ambiguidade, como também poderia ser descrita a vida de Getúlio.
Entrarão para a história da literatura brasileira, pela beleza e profundidade da descrição, cenas como a do momento em que o presidente recebe, em passeio com os filhos pela Baía de Guanabara, a notícia do estouro da revolta paulista em 1932; o primeiro ato do Estado Novo, em que as bandeiras dos estados brasileiros são queimadas e a bandeira nacional e o retrato do ditador erigidos; a queda do ditador Vargas, dentro de um palácio cercado por militares, comendo marmita, em 1945; os olhos, à beira da morte, em busca da Cordélia que esteve sempre ao seu lado, a filha, confidente e conselheira Alzira Vargas.
Rigor histórico e estilo literário
O mérito da trilogia, porém, não se resume apenas à narrativa e à literatura.
Em um ano pródigo de efemérides, em que o país exalta, sem refletir, os 30 anos das Diretas Já e lamenta, sem se aprofundar, os 50 anos do golpe de 1964, a leitura dos três livros é fundamental para um verdadeiro debate histórico sobre o período da ditadura civil-militar, de forma a compreender os termos em que nossas repúblicas foram implantadas e reimplantadas entre 1889 e 1964.
Um dos aspectos mais marcantes é a influência do positivismo em nossa mentalidade política. Trata-se uma escola de pensamento para a qual o progresso de um país se daria por meio de uma elite ilustrada, que conduziria, de maneira autoritária (pela ordem), o país e seu povo à modernização (progresso), à parte das instituições democráticas. Tal pensamento não apenas serviu de base para Vargas, como foi o ideário da nossa Primeira República e das que a seguiram, até o golpe de 1964. (Um dos lugares onde essa ideologia tinha maior penetração era o Rio Grande do Sul, estado-natal de Vargas. Talvez não por acaso, três dos ditadores da ditadura civil-militar de 1964 – Costa Silva, Médici e Geisel – eram gaúchos.)
Outro traço marcante é a onipresença do poder militar – e seu ideário positivista – em todos os momentos de crise política e virada histórica do Brasil, visto sempre como solução, forma de redenção aos males do país.
Quando o assunto é Brasil contemporâneo também não faltam paralelos que mostram nossos vícios históricos – e o quanto eles emperram nossas transformações. O uso do medo do comunismo como justificativa para desestabilizar governos populares e regimes democráticos; as paralisantes conciliações em contraposição com a ausência de diálogo entre adversários, que se convertem em inimigos; a insensibilidade da classe dominante diante das necessidades dos trabalhadores e miseráveis; a sua obliquidade diante da necessidade de modernizar o país; a repressão truculenta aos movimentos políticos e sociais, que deram ao povo brasileiro a injusta fama de acomodado e silencioso.
Por todos os méritos – literários, históricos e políticos – os três volumes de Getúlio se inserem na nossa bibliográfica ao lado das grandes obras de ficção e não-ficção do Brasil. Graças ao trabalho de Lira Neto, Getúlio ganha a tardia eternidade ao lado de outros grandes personagens e formadores do Brasil. A Cacilda Becker, de Luís André do Prado; o Marighella, de Mário Magalhães; o Chatô e a Olga Benário, de Fernando Morais; a Clarice Lispector, de Benjamin Moser; o Nelson Rodrigues, o Garrincha e a Carmen Miranda, de Ruy Castro; o David Nasser, de Luiz Maklouf Carvalho; o Jango, de Jorge Ferreira; a Dercy Gonçalves, de Maria Adelaide Amaral; a Elis e o Cazuza, de Regina Echeverría e outros tantos que, apesar da oposição de alguns poucos, serão biografados, analisados, narrados com o rigor histórico e o estilo literário que fazem da biografia o grande gênero da não-ficção.
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Danilo Thomaz é jornalista