Os efeitos políticos do suicídio de Getúlio Vargas (1882-1954), que hoje [24/8] completa 60 anos, já se dissiparam há muito tempo, mas o ato continua a reverberar pela singularidade.
Trágico, violento e irrecorrível, ele discrepa dos costumes conciliatórios vigentes desde pelo menos meados do século 19, quando se fixou o padrão das revoluções com pouco ou nenhum derramamento de sangue e das transições negociadas em que parte da velha ordem se transfere como por osmose à nova (1889, 1930, 1945, 1964, 1985). Discrepa também da personalidade do suicida, conciliador-mor que encarnou como ninguém o papel de sedutor matreiro capaz de se safar das piores encrencas. Como todo gesto extremo, terá sido preparado por uma complexa malha de causas.
É sabido que Getúlio sentia atração pelo suicídio honroso, destinado a prevenir alguma condição intolerável na eventualidade de uma derrota definitiva. Pelo menos duas vezes ele mencionou a possibilidade por escrito, quando era arrastado, em outubro de 1930, após muita hesitação, à ofensiva rumo ao Rio, sem saber que resistência encontraria pelo caminho, e em julho de 1932, quando foi surpreendido pelo ímpeto da contrarrevolução constitucionalista que irrompeu em São Paulo. Um de seus filhos viria a suicidar-se em 1977, o que parece sugerir alguma propensão inata.
Para que essa atração se convertesse em ato, porém, foi preciso que todas as portas se fechassem. Com os mandantes da tentativa de assassinar Carlos Lacerda (da qual resultou a morte de um oficial da Aeronáutica) alojados em seu palácio, com o “mar de lama” que as investigações subsequentes revelaram, Getúlio enfrentava uma avassaladora campanha pela renúncia, que logo se traduziu em ultimato militar transmitido pelo próprio ministro da Guerra (Exército). Naquela madrugada de 24 de agosto de 1954, ele ainda negociou uma licença que o manteria afastado do cargo até a conclusão das diligências. Os militares, contudo, foram irredutíveis.
Relatos da época indicam um presidente amargurado, aos 72 anos, com os desmandos na família cometidos às suas costas e, ao mesmo tempo, receoso de que ela passasse a objeto de execração pública: um irmão e um filho talvez estivessem a par da preparação do atentado; outro filho vendera uma propriedade a Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal do palácio e mentor do crime, pago com empréstimo bancário avalizado por João Goulart, ministro do Trabalho até a véspera e afilhado político do presidente.
Num homem tão racional e metódico, mesmo os lances da paixão foram comedidos pelo cálculo. Psicologia à parte, o extraordinário nesse suicídio é seu alcance político –num derradeiro passe de mágica o velho prestidigitador inverte a maré, derrota os inimigos quando mal haviam aberto o champanhe (conforme o relato de Lacerda sobre o fatídico amanhecer) e se consagra na memória popular, comandando seu vasto eleitorado por algumas décadas desde o além-túmulo (há indícios de que ele tencionava apoiar Juscelino e seguramente gostaria de ter visto Jango ou Leonel Brizola como sucessores).
Atentado
Ao contrário do suicídio, o atentado é quase inexplicável. De sua execução desastrada, Lacerda emergiu como mártir vivo (fora ferido no pé) conclamando os militares a fazer justiça ao colega de farda assassinado. Mesmo que o crime fosse bem-sucedido, porém, naquele ambiente exasperado as consequências seriam devastadoras para o governo, sobre o qual recairiam as suspeitas pela eliminação do principal inimigo de Getúlio na imprensa. Por rústicos que fossem, é estranho que os autores da trama não se dessem conta disso.
Atentado e suicídio formam o clímax do terceiro volume da biografia escrita por Lira Neto, “Getúlio – Da Volta pela Consagração Popular ao Suicídio (1945-1954)” [Companhia das Letras, R$ 49,50, 430 págs.], agora lançado, completando uma empreitada de 1.654 páginas. Ali, esse autor que gosta de explorar peripécias e lances pitorescos, mas trata seu material com exatidão escrupulosa, dá a versão dos condenados, apresentada anos depois do episódio.
As confissões teriam sido obtidas sob coação. Os dois acusados apenas seguiam Lacerda, em busca de algo que o comprometesse. Quando, na madrugada de 5 de agosto, o major Rubens Vaz estacionou na rua Tonelero e Lacerda desceu do carro para entrar no prédio onde morava, um dos réus teria se aproximado para anotar o número da placa, sendo interpelado pelo militar, que também saíra do carro. Seguiu-se uma luta entre ambos; Lacerda, que mal entrara no prédio, começou a atirar, atingindo por engano o major. Um segundo tiro, desferido pelo acusado com quem se atracava, matara o oficial. O inquérito teria sido uma fantástica farsa.
São mínimos os indícios em apoio dessa versão. Lira Neto os registra com gosto, contente por envolver acontecimento tão mítico nessas fumaças de mistério: a arma de Lacerda, que de fato disparou, não foi periciada; os boletins médicos do ferimento no pé desapareceram. Mas o biógrafo endossa a versão oficial, sustentada por todas as evidências disponíveis, entre elas o relato de três jornalistas do “Diário Carioca” que por acaso viram a cena a poucos metros de distância (um deles, o vizinho Armando Nogueira, foi o primeiro a reportá-la). É preciso uma sólida fé em teorias conspiratórias para acreditar que não houve atentado.
Guarnição
A guarda pessoal, que na época tinha 83 integrantes, havia surgido em 1938. Numa noite de maio daquele ano, seis meses depois do golpe em que Getúlio se fez ditador, um destacamento integralista (espécie de fascismo católico-tropical) invadiu o
Palácio Guanabara com o objetivo de assassiná-lo e tomar o poder. O assalto foi rechaçado pela guarnição e por auxiliares do autocrata, mas a fuzilaria se prolongou enquanto o Exército e a Polícia Especial demoravam, de forma suspeita, a enviar reforços.
Benjamin Vargas, irmão mais novo de Getúlio, teve papel crucial na defesa do palácio naquela madrugada e parece ter sido responsável pelo fuzilamento sumário, nos próprios jardins do Guanabara, de uma dezena de golpistas presos quando o ataque foi debelado ao amanhecer.
Em 1932, esse mesmo irmão se pusera à frente de um batalhão de voluntários, recrutado entre capangas e apaniguados da família Vargas em São Borja para combater os paulistas. Nesse batalhão, que numa arruaça de fronteira chegou a invadir território argentino, figurava Gregório Fortunato, o futuro Anjo Negro, a quem foi confiada, depois do assalto integralista, a missão de chefiar o bando convertido em guarda permanente dedicada à proteção do ditador.
Lira Neto narra incidentes espantosos durante a ditadura do Estado Novo em que Bejo –como o irmão atrabiliário e alcoólatra era chamado em família– provoca desafetos em boates, dá tiros a esmo, chega a ferir terceiros e continua impávido. Certa vez mandou sequestrar e espancar um jornalista; o assecla encarregado da tarefa seria mais tarde um dos dois condenados pela execução do atentado contra Lacerda. Nesse submundo provinciano em que se cruzavam compadrio e delinquência, em que o hábito caudilhesco da violência se ampliara na impunidade garantida pela ditadura, formou-se o “mar de lama” que tragou o mandato democrático de Getúlio.
Carta-testamento
Mas, como no movimento entre tese/antítese/síntese, atentado e suicídio somente se resolvem no terceiro elemento mítico dessa narrativa, a cartatestamento, também ela objeto de controvérsia duradoura. Existem duas versões desse texto.
A primeira, manuscrita certamente pelo próprio Getúlio, é mais curta. Seu tom é apressado, algo prosaico, e certas passagens exalam ressentimento. O autor reclama da “fraqueza de amigos que não me defenderam” e da “felonia de hipócritas e traidores a quem beneficiei”. O fecho é pedestre e anticlimático: “A resposta do povo virá mais tarde…”.
A segunda versão, datilografada, logo distribuída e replicada à exaustão nas rádios e jornais, foi a que passou à história. É uma magnífica exortação política, escrita com simplicidade intensa e solene. Sua qualidade literária quase faz esquecer o quanto ressoa de demagogia nacionalista e de culto à personalidade em seu teor.
“Não me acusam, me insultam, não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa.” Feitas as negativas desse introito, que valem por uma refutação, o texto relembra que, depois de “decênios de espoliação”, o autor se fez chefe da Revolução de 1930, instaurou “um regime de liberdade social”, foi deposto e retornou ao governo “nos braços do povo”.
Passa a enfrentar a resistência de grupos “nacionais e internacionais” ao aumento do salário mínimo, à restrição nas remessas de lucros para o exterior, à criação da Eletrobras. Vinha lutando “mês a mês, dia a dia, hora a hora” –o tempo da narrativa só se acelera– até concluir: “Nada mais vos posso dar, a não ser o meu sangue”, o que confere uma ressonância cristã ao sacrifício feito em nome do povo e que sela sua aliança (“uma chama imortal”) com o líder imolado.
Segue-se uma saraivada desconcertante de antíteses: “Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém”. No último parágrafo, uma série de frases curtas, sincopadas, prepara o crescendo de suspense que se desata no majestoso traslado da sentença final: “Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história”.
Parece haver algum consenso entre os historiadores quanto à sequência de eventos. Getúlio faz anotações para uma carta que deixaria caso as circunstâncias o forçassem ao suicídio. Lira Neto conta que Alzira, sua filha e secretária, diz ter visto essas anotações uma semana antes entre os papéis do presidente que, interpelado por ela, desconversou, atribuindo-as a um momento de “desabafo”. Essa versão já dizia que “velho e cansado, preferi ir prestar contas ao Senhor”.
Em algum momento daqueles dias, Getúlio discute o assunto com o jornalista José Soares Maciel Filho, amigo e redator de seus principais discursos, a quem pede que redija uma segunda versão, como haviam feito em outras ocasiões. Maciel, que na juventude fora aluno do filósofo Benedetto Croce na Itália e depois criara um jornal no Rio para sustentar a Revolução de 30, era um ideólogo nacionalista que ocupou cargos altos na burocracia getuliana. Para tranquilizar o assessor, é plausível que o presidente tenha alegado reservar o texto para uma situação extrema que provavelmente nunca ocorreria.
Cenário
Claro que todo esse cenário é apenas a condensação teatral de um drama muito maior. O raio de manobra do governo vinha se estreitando, conforme era tracionado por uma dinâmica de polarização entre forças econômicas e interesses sociais contraditórios, que Getúlio (como Jango 20 anos mais tarde) tentou conciliar enquanto conseguiu.
Como sempre, o cobertor era curto. O país precisava de recursos externos para investimentos em infraestrutura, mas a prodigalidade que os americanos haviam mostrado na Segunda Guerra e no começo da Guerra Fria, quando era prioritário manter boas relações com o Brasil, cedera lugar, a partir de 1952, a uma atitude mais dura e à exigência de que os empréstimos tramitassem menos via governos e mais via instituições privadas, o que reclamava um “ambiente de negócios”, como se diria hoje, mais amigável.
O foco das tensões era o regime de câmbio, que sofreu idas e vindas no período, conforme o governo cedia às pressões estrangeiras, aos exportadores de café ou aos importadores nacionais. Programas de estabilização financeira (encetados pelos sucessivos ministros da Fazenda, Horácio Lafer e Oswaldo Aranha) eram solapados pela necessidade política do governo de ceder às demandas crescentes. A economia crescia a uma taxa média anual próxima a 6%, mas a inflação, que estivera em 8% no quadriênio anterior, chegou a cerca de 20% anuais no mandato de Getúlio.
Pelo flanco sindical, o governo era acossado por greves e pela radicalização do semiclandestino Partido Comunista, que, em mais uma reviravolta determinada por Moscou, rompera com Getúlio e adotava uma política de agitação operária. Em maio de 1954, o presidente concedeu o controvertido reajuste de 100% no salário mínimo, elevando-o a valor real próximo ao de hoje, quando a renda per capita é quase cinco vezes maior que a da época.
O governo, entretanto, mantinha controle sobre o Parlamento, onde a Câmara dos Deputados votou, em junho de 1954, um pedido de impeachment do presidente, derrotado pelo placar de 136 votos contrários e apenas 35 a favor.
A oficialidade militar, impregnada pelas divisões que cindiam a opinião pública e alvoroçada pela perda de poder aquisitivo dos soldos, ainda abrigava um setor “progressista”, simpático ao nacionalismo do presidente ou ao menos apegado ao regime constitucional de 1946. O assassinato do major Vaz gerou uma catarse corporativa que fez a balança de forças pender pelo afastamento, via renúncia ou deposição.
Getúlio fora um oportunista por excelência, adotando os disfarces ideológicos que mais lhe convinham a cada conjuntura, mas seria um equívoco ignorar a linha de continuidade a estruturar essa trajetória cujas aparências parecem tão mutáveis. Sua aversão à democracia parlamentar, sua concepção do Estado centralizado como indutor do desenvolvimento e do equilíbrio entre classes e regiões, até mesmo sua prudência em matéria fiscal e a inclinação por um regime plebiscitário que mantivesse o líder por tempo indefinido no poder –tais aspectos integram uma doutrina à qual permaneceu constante, emanada do pensamento positivista do francês Auguste Comte (1798-1857).
No final do século 19, essa doutrina, adaptada por discípulos brasileiros, desempenhou forte influência na mentalidade republicana, especialmente a gaúcha. Naquele Estado, facções positivistas e liberais chegaram a se enfrentar em duas guerras civis (1893-5 e 1923). Influência parecida aconteceu na mesma época em outros países latino-americanos, e diga-se de passagem que o recente “bolivarianismo” tem suas raízes nesse mesmo substrato.
Em linguagem marxista, as teorias de Comte refletiam na França uma parcela do pensamento burguês engajada na universalização de direitos que a Revolução de 1789 apregoou, mas intimidada pela ameaça à propriedade representada pelas insurreições operárias de 1848 e 1870. Era preciso patrocinar mudanças dentro de um curso dirigido, “racional” (a doutrina exercia peculiar fascinação sobre engenheiros e militares). Tais ideias vinham a calhar quando transplantadas ao contexto de uma elite hostil ao bacharelismo, dissidente e autoritária, reformista e conservadora, como aquela que produziu o estadista Getúlio Dornelles Vargas.
Enfoque
Panorama tão amplo escapa, como não poderia deixar de ser, aos propósitos do biógrafo; seu enfoque sempre minucioso está concentrado no círculo íntimo do presidente. Neste terceiro volume, o narrador utilizou os rascunhos que Alzira Vargas preparou para seu segundo livro de memórias, nunca publicado, assim como as numerosas cartas que trocou com o pai, entre 1945 e 1950, quando ele cumpria seu ostracismo como estancieiro na fazenda de São Borja e ela atuava, no Rio de Janeiro, como sua articuladora.
Além de filha devotada e secretária diligente que lhe providenciava roupas, remédios e charutos, Alzira parecia possuída, como o pai e ao contrário de certos parentes, pela paixão da política enquanto responsabilidade pública. Era também uma mulher corajosa, arguta e dotada de tino maquiavélico, o que torna a leitura da correspondência muito instrutiva.
Suas metáforas, extraídas do léxico feminino, são quase sempre tiradas divertidas nas quais ela informa o pai sobre o que se passa na corte do presidente Dutra –a famosa “copa e cozinha”– para então abrir o leque das opções a seu ver disponíveis e declarar-se à espera de ordens. Lira Neto revela que Samuel Wainer foi enviado para a famosa entrevista com Getúlio (“voltarei como líder de massas”) ao que tudo indica numa manobra engendrada pela filha no Rio.
Anos mais tarde, na última reunião ministerial que Getúlio presidiu, às primeiras horas do 24 de agosto, seriam dela e de Tancredo Neves as vozes categóricas a favor de retomar pela força o mandato prestes a ser usurpado, prendendo imediatamente os generais insubordinados.
Protagonistas
Se há muito de cinematográfico no andamento dos livros de Lira Neto, não resta dúvida sobre quem são os protagonistas dessa história, que vai sendo ocupada do meio para o fim pela preciosa relação entre um pai declinante e sua filha dileta –até que o delicado fio que prende esse Lear a sua Cordélia se rompa na torrente final da tragédia.
No entanto, parece que foi faltando tempo ao autor (o trabalho inteiro consumiu cinco anos), de modo que o terceiro e o segundo volume, embora admiráveis, talvez não
alcancem o nível primoroso do primeiro nem tenham sua originalidade, favorecida por tratar da fase inicial, menos divulgada, da vida do personagem.
Ele foi assunto de diversas abordagens biográficas, em geral oficiosas (a própria Alzira escreveu a sua, “Getúlio Vargas, Meu Pai”, publicada em 1960). Em 1974, o criterioso historiador John W. Foster Dulles, biógrafo de Lacerda e filho do secretário de Estado norte-americano entre 1953 e 1959, publicou “Getúlio Vargas: Biografia Política”. Mais recentemente, o historiador Boris Fausto lançou seu excelente e conciso “Getúlio Vargas – O Poder e o Sorriso” (2006).
Apesar desses antecessores ilustres, é provável –devido às ambições narrativas, ao rigor documental da imensa pesquisa e ao desengajamento do ponto de vista– que a biografia de Lira Neto assuma a posição de obra definitiva sobre o personagem por longo tempo, moldando a visão das próximas gerações de estudiosos, leitores e espectadores.
Presente
Quanto ao leitor atual, não será ele tentado a ver analogias inquietantes entre aquele passado nem tão remoto e o presente? O PT em vez do PTB, Lula em vez de Getúlio (Dilma em vez de Dutra?), o PSDB no lugar da UDN, o PMDB no do PSD –a demagogia, a corrupção, a direita golpista–; será que estamos presos ao mesmo círculo que se repete? Mas basta ressaltar as diferenças mais importantes para concluir que essa identidade é aparente.
Em 1954, o capitalismo estava enraizado no país de modo ainda mais precário do que hoje, quando uma proporção maior da sociedade e do território foi incorporada a sua dinâmica e absorveu parte de seus benefícios. Em última análise, o sentido histórico da ditadura militar (1964-85) foi exatamente forçar pela violência uma trégua nas lutas sociais, que permitisse a acumulação destinada a completar a tarefa iniciada desde os anos 1930, a modernização capitalista.
Lamentamos as metrópoles atulhadas e a depredação da natureza, mas foi esse processo vertiginoso que trouxe a mortalidade infantil de 128 óbitos por mil nascimentos (1955), por exemplo, aos atuais 14, e a expectativa de vida dos 45 anos (1950) aos atuais 75, ambos índices objetivos de melhora nas condições coletivas de vida.
Por motivos que extrapolam esta resenha, mas que decorrem em parte do amadurecimento institucional após tantas aventuras frustradas, o Exército deixou de ser o fio desencapado da política, que potencializava os impasses até conduzi-los a soluções de força. A estrutura constitucional passou a funcionar porque a trama de interesses na economia e na sociedade se tornou mais forte e complexa. Por falta de respaldo suficiente, direita e esquerda exaltadas tiveram de abandonar há 40 anos qualquer tentativa séria de golpismo.
As relações com os Estados Unidos também evoluíram, conforme nossa dependência daquela economia se tornou menor, de maneira que uma posição nacionalista se traduziria, hoje, mais em termos de competição por mercados e tecnologias do que nos moldes tradicionais de uma resistência anti-imperialista.
O maniqueísmo ideológico dos anos 1950 se dissolveu numa espécie de centrismo tecnocrático, administrativista, no qual as alternativas, por mais encarniçada que continue sendo a luta de suas falanges pelo poder, não passam de versões um pouco mais à esquerda ou à direita –precisamente como PT e PSDB na atualidade, separados por divergências mais de grau e estilo do que de essência.
******
Otavio Frias Filho é diretor de Redação da Folha de S.Paulo