O Observer publicou no final do mês passado uma resenha do último livro de Hugo Williams, o poeta inglês, que termina assim: “É um prazer falar bem do trabalho de Hugo: a sensação vem do tempo em que alguns sentiam a necessidade de palavras gentis e de proteção. Hugo é hoje mais uma glória nacional do que uma espécie em extinção. Não que ele note, talvez. Ele é menos dependente de elogios do que a maioria dos escritores, ainda que o seu último livro, como sempre, os mereça”. Quatro dias depois, o resenhista morreu. Era Karl Miller.
Suas últimas palavras, gentis e com senso de proteção, poderiam ser aplicadas a si mesmo. Mas o sentido de uma das frases teria que ser invertido: ainda que tenha sido uma glória nacional, Miller pertenceu a uma espécie em extinção, a dos editores capazes de fazer com que publicações pequenas se tornem relevantes.
Ele passou pelo Spectator e pelo New Statesman antes de fazer do Listener, jornalzinho modorrento que transcrevia programas da BBC, um grande fórum das letras e da política. Não era qualquer editor. Tanto que o Guardian registrou: “Imaginação. Atenção ao detalhe. Coragem diante da controvérsia. Habilidade em obter o melhor das pessoas. Poucos dentre nós têm ao menos uma dessas qualidades. Karl Miller tinha todas elas, e isso fez dele um grande editor”.
Em Dark horses, o seu livro de memórias, ele recua ao século XIX, à Edinburgh Review, para explicar a sua concepção de jornalismo. Mostra que duas partes servem de coluna dorsal para uma revista: a do começo trata de coisas sérias, política e economia, e a do fim, o back of the book, acompanha as artes com um quê de frescura. Miller advogava a interpenetração das duas partes em estilo e substância, de modo a expor a sociedade de maneira unitária.
Gosto amargo
Parece fácil, mas é uma África. É preciso balancear profundidade e leveza, temas populares com abstrusos, mamutes da intelligentsia e estreantes inseguros, humor e seriedade, pulso firme e abertura para o novo. Há que se penar para que, por meio de seus colaboradores, a revista expresse a sua identidade. E Miller teve o toque de gênio, que não se aprende na escola, para ir com imaginação aos nervos do real: fez de Eric Hobsbawm, o historiador marxista, um crítico de jazz; mandou Seamus Heaney, depois Nobel de literatura, cobrir a guerra do IRA contra a ocupação britânica.
O balanço editorial, idiossincrático até o talo, fez com que saísse do New Statesman. O responsável pela revista, o historiador Paul Johnson, era contra a cobertura que Miller fazia de assuntos pop – dos Beatles ao futebol – mas cortou um artigo “difícil”. O editor demitiu-se na hora. Johnson quis fazer um mimo para calar-lhe. Preencheu um cheque polpudo (cerca de R$ 150 mil em valores de hoje), que Miller picotou na mesa do historiador.
Em 1979, houve uma greve na imprensa inglesa que fez com que o Times Literary Supplement deixasse de ser publicado por um ano. Liderado por Miller, um grupo de profissionais aproveitou o vácuo e criou uma versão do New York Review. A revista suplantou o modelo americano e se tornou a publicação intelectual mais vivaz do cenário anglo-saxão.
Fez isso com artigos longos, sem fotografias e ilustrações, tocando em todos os assuntos. Num ambiente intelectual reduzido a gritos espasmódicos (agora de 140 caracteres), a lição de Miller se impôs – o que conta é o argumento, o raciocínio lastreado na pesquisa da realidade, e não nas sacadas do autor.
A London Review tira 65 mil exemplares e tem um site que atrai 600 mil visitantes ao mês. O Spectator sai com 62 mil exemplares. O Listener, com pouco menos de 30 mil. Todos vão mal das pernas. A London Review sobrevive graças à fortuna da dona, Mary-Kay Wilmers. (Ela descende de Max Eitingon, do grupo de psicanalistas que se formou com Freud, e de Leonid Eitingon, o agente stalinista que urdiu o assassinato de Trotsky.)
Mary-Kay Wilmers começou a fazer revistas com Miller nos anos 1960. Foi sempre a sua segunda na hierarquia das redações nas quais trabalharam. No entanto, ela veio a afastá-lo da direção da London Review, em meio ao costumeiro ronronar dos sabujos da nova ordem acerca do “temperamento difícil” de Miller. O necrológio que ela fez do ex-chefe é um amontoado de frivolidades folclóricas que mal disfarçam a punhalada, embebida em inveja e rancor.
Já Karl Miller jamais criticou a aprendiz tornada patroa. O relato sobre o seu afastamento da revista rende as páginas mais pungentes de Dark horses, perpassadas que são por rabugens de melancolia. Como sói ocorrer, o bom editor acabou com um gosto amargo na boca. Justamente por ter estado à altura do seu tempo, e da imprensa com a qual teve que se haver.
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Mario Sergio Conti é jornalista