Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O anjo necessário

Leandro Konder morreu. A nota triste – e dolorosa – de seu passamento deve nos remeter para o que escreveu o poeta andaluz, Rafael Alberti. No dia seguinte ao assassinato de Salvador Allende, em poema comovido e comovente, ressaltou sua permanência luminosa ao afirmar: “a morte não acaba nada”. Agora, o verso forte do poeta nos serve de consigna na atual travessia. “Perdemos o maior humanista e filósofo que o Brasil teve”, lamenta Milton Temer.

O Leandro se foi, mas, como escreveu Chico Alencar, “o que ele nos deixa é imorredouro”.

Os impasses da crise atual abrem espaços para o reconhecimento da importância e atualidade da obra de Leandro Konder. Quem sabe ver já percebeu que sua trajetória de intelectual militante adquiriu uma dimensão ao mesmo tempo curiosa e extraordinária. Trata-se, sem dúvida, de uma influência forte, marcante, decisiva, mas que se realiza de forma peculiar. Uma obra que não se impõe como construção majestosa ou monumental, mas como presença subterrânea, que retorna sempre ao cotidiano do pensamento crítico e que frequenta com desenvoltura a fronteira dos grandes conflitos no nosso tempo.

Leandro foi, desde sempre, um semeador de ideias, de poesia, de humor, de esperanças. Pequenas peças, ensaios, artefatos, alguns deles de efeito retardado, plantinhas tenras que são distribuídas com enorme generosidade nos mais distintos terrenos do debate cultural. Sementes que, fora do controle ou paternidade do autor, podem resultar em árvores frondosas.

Professor, filósofo, ensaísta, articulista de jornal, ficcionista, poeta bissexto, conferencista brilhante, debatedor vivaz e, quando se fez necessário, até redator de panfletos e agitador de comício relâmpago. Ele sempre bateu bem nas onze.

Figura luminosa

No cotidiano, nas salas de aula, no debate político e filosófico, nos livros, nos artigos, nas conversas, em todas as múltiplas aparições se encontrará sempre o mesmo Leandro. A erudição e o rigor habituais, sempre como presença ao mesmo tempo permanente e sutil, andaimes invisíveis que nunca incomodam ou intimidam. Bem humorado, traduz para o mortal comum o pedregoso continente da filosofia de Hegel. Sério, investiga a importância social do humor requintado do Barão de Itararé. Em qualquer texto ou contexto, acima de tudo, fica sempre cravada a sua marca forte: uma espantosa clareza. Clareza cristalina que impressionou Otto Lara Rezende: “ele, mais que doutor, é douto, pois tem o dom de ensinar”.

A difusão qualificada das ideias marxistas no Brasil deve muito a Leandro Konder. Vale para ele e seu inseparável amigo Carlos Nelson Coutinho a expressão que Antonio Cândido cunhou para a dupla de luminares do nosso modernismo, Oswald e Mario de Andrade. Carlito e Leandro também formaram um “par ímpar”. Sempre cuidaram, na ramagem variada da “filosofia da práxis”, da boa cepa e da seiva mais resistente: o próprio Marx, o Engels maduro, um certo Luckás, o Bloch do princípio esperança, o Benjamin da melancolia fecunda, e o resistente Antonio Gramsci. Traduzir, divulgar, formular, na interface que articula o debate político e cultural e que combina a razão crítica com o otimismo da vontade transformadora, tarefas permanentes da dupla localizada na linha de frente da formulação marxista no Brasil.

O professor Robert Alter, estudioso bíblico e especialista em literatura hebraica, escreveu um belo livro sobre Kafka, Benjamin e Scholen, onde os três são chamados de “anjos necessários”. Tais autores, também caros ao nosso querido Leandro, seriam figuras luminosas, portadoras de uma luz peculiar, que não ofusca, ao contrário, fornece conforto. Quando o brilho feérico e de aluguel da sociedade do espetáculo entra em eclipse, quando o que se chama de erosão da experiência, decadência do saber, morte da utopia se mostram como desastres da modernidade, a retomada passa sempre pelos “anjos necessários”. Gente que, como os autores citados, escova a história a contrapelo.

Leandro Konder, o sereno rebelde, declarou certa vez em entrevista ao “O Pasquim”, nos tempos daquela “página infeliz da nossa história” que ainda não foi totalmente virada: “Eu mantenho a esperança. Gratuitamente, sem nenhum fundamento”. Palavras de “anjo necessário”. Vale para ele o que foi dito para outra figura luminosa, uma candeia do mundo do samba que Leandro conhecia e apreciava tanto: é luz de eterno esplendor. Jamais se apagará.

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Leo Lince é sociólogo