Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Depoimentos

>> Jorge Antonio Barros

O dia em que o chefe salvou a memória do repórter

Sem falsa modéstia procuro colecionar sempre alguma história boa para contar dos amigos e a maldade toda eu deixo pros inimigos. Do querido e saudoso Sérgio Fleury tenho uma história muito interessante porque, apesar de ter sido pessoal, ela tem um caráter universal. Desmente o mito de que chefe tem que tratar os subordinados na base do tacape, aquela história de que “quem tem chefe é índio”.

Repórter consagrado no JB, Sérgio Fleury tornou-se chefe de reportagem daquele matutino no ano de 1981, justamente quando eu havia acabado de ingressar no jornal. Fleury era o chefe da tarde, depois do Heraldo Dias que cuidava da parte da manhã.

Certo dia, em setembro de 1982, eu fazia uma matéria dominical sobre um grupo espírita que toda semana à noite dava um sopão para os moradores de rua da Avenida Chile, embaixo de uma passarela, bem pertinho do Triângulo das Bermudas do dinheiro público, onde ficam os prédios da Petrobras, do BNDES e do Banco do Brasil.

Ao final da matéria voltei todo alegre para a redação quando me dei conta de que havia perdido o bloco de anotações, na verdade um conjunto de laudas onde se garranchava a apuração. Fiquei desesperado. Não sabia como escrever a matéria sem as anotações. Não me dava conta de que poderia tentar reconstituir a história de cabeça. Demorei algumas horas até tomar coragem e procurar o Fleury para contar meu drama.

– Fleury, preciso te falar uma coisa grave, muito grave – disse ao chefe.

– Senta aí, Jorginho. Conte-me tudo, não me esconda nada – respondeu Fleury.

– Lembra a matéria que estou fazendo para domingo, com aquelas fotos fabulosas do Almir Veiga? Pois é. Eu perdi as anotações. Não sei o que fazer, tô perdido.

Fleury deu um sorriso, me relaxando.

– Tá vendo aquele cara ali? – apontou para Israel Tabak, que era um dos monstros da reportagem do JB.

– Sei, o Israel – disse, sem entender.

– Pois ele perde as anotações quase toda a semana e escreve as melhores histórias do jornal. Então você senta ali afastado de todo mundo, se concentra e despeja tudo o que se lembrar na máquina. Depois escreve a história.

A luz no fim do túnel. Segui a orientação e no final do dia tinha toda a história diante de mim com os nomes dos personagens e tudo. Não foi prodígio meu, que sempre tive deficiências na memória, apesar de ter sido muito bom naquele jogo mini-memo, lembram? A palavra de conforto e acolhimento do Fleury salvaram minha reportagem. Para não dizer que lembrei de tudo, inventei apenas um nome de personagem, que não conseguia lembrar de jeito algum.

O título da matéria de meia página: “Quase 100 matam a fome na última ceia dos mendigos”, de 26 de setembro de 1982.


>> Sylvia Moretzsohn

Apenas agora de manhã (20/11) soube da morte do Sergio Fleury. Não tenho como expressar o tamanho da minha tristeza. Era dessas figuras que a gente não esquece, pela competência aliada ao humor e ao afeto. Devo algo fundamental a ele, à parte o que aprendi no breve convívio no velho JB: o seu apoio entusiasmado à minha pesquisa sobre o papel dos motoristas de jornal na produção da reportagem. Foram muitos os que me ajudaram, mas foi com ele, Romildo Guerrante e Custódio Coimbra, empenhados em buscar contatos e localizar fontes, que pude começar a desenvolver o trabalho. Sem essa contribuição fundamental a pesquisa não teria saído, ou teria sido muito mais pobre. E não me conformo por não tê-lo encontrado novamente para lhe entregar o livro que resultou desse projeto. É a velha história do “qualquer dia a gente se encontra”, e vamos adiando e o tempo vai passando e de repente o tempo acaba.

O mínimo que posso fazer é prestar essa homenagem aqui, ainda que tardia.
Entreguei o livro à viúva e ao filho, no velório. Fiquei comovida e um pouco desconcertada porque pediram que fizesse a dedicatória a ele, pois afinal todos também eram Fleury. Tão estranho escrever assim, como se ele estivesse vivo.

Era uma pessoa extremamente agregadora. E muito zelosa da memória. Volta e meia publicava no seu mural no Facebook pedaços de coisas perdidas no tempo, como a reprodução da velha lauda quadriculada do JB (“30 linhas de 72 batidas”), ou de símbolos como o elefantinho que era a marca dos Classificados do jornal. Mas o melhor exemplo desse esforço é o “Álbum Jotabeniano“, aberto em 1º de junho de 2010, do qual ele foi um dos criadores e um dos principais incentivadores: um exemplo de como as coisas banais do cotidiano viram história. Coisas que precisamos naturalizar no nosso comportamento, na nossa rotina, e que ficam esquecidas e de repente retornam e nos surpreendem: nós éramos assim e não nos lembrávamos, e teríamos esquecido, não fossem os guardiães da memória.

 

>> Alexandre Medeiros

Foi-se Sergio Fleury. Foi ficar ao lado do Luiz Mario Gazzaneo, do Heraldo Dias, do Luciano de Morais. Como aprendi com essa turma. Fleury foi o chefe de reportagem que me deu a primeira pauta relevante nessa estrada do Jornalismo. Um escândalo de preços superfaturados da merenda escolar no primeiro governo Brizola, lá pelos idos de 1983. Ele e o Luciano me passaram a pauta com a recomendação de não ter medo. Eu era estagiário do JB, com pouco mais de um ano de experiência. Eles me ensinaram, em suma, a não ter medo de investigar. Lá fui eu. Manchete no dia seguinte. Sem assinar, que estagiário não assinava. Caiu o presidente da empresa de contratação de merenda escolar, fecharam a firma. A merenda passou a ser comprada pelo preço justo. Devo isso ao Fleury. Essa e tantas. Um cara que trabalhava com alto astral, que não perdia a piada, e que diante de alguma dificuldade que você ousasse levantar, vinha com aquele bordão inesquecível: “Picas! Vai lá e faz essa merda, porra!”. Um gentleman. Um cara que te jogava pra frente, sempre. O que ele fez para juntar a galera do JB, nos memoráveis almoços da Fiorentina, foi incrível. Perseverança, vontade, saudade, carinho. Amizade. Um cara como esse não se acha na esquina, a gente conta nos dedos. Fiel aos amigos, cuidadoso com as pessoas. Atento aos pormenores. Fleury encarnava ao mesmo tempo o boa-praça e o cara que te chama às falas. Na mais pura linhagem do velho e bom Gazza. Devem os dois estar agora se abraçando lá em cima, abrindo um vinho. E a gente aqui, mais pobres dessa nobreza de alma, resistindo. Vai, Fleury, vai ver lá de cima como Búzios está ensolarada, e como o Rio cria mais um verão nessa primavera. A gente fica aqui com teu sorriso e tua imensidão.

 

>> João Baptista de Abreu

Rio de Janeiro e Búzios estão menos felizes hoje, Aos 73 anos, morreu o jornalista Sérgio Fleury, que por mais de 15 anos foi repórter do Jornal do Brasil, nos bons tempos do diário da condessa. Com raro senso de humor e faro de reportagem, Fleury era um exemplo para este estagiário que chegou à redação pelo cursinho JB em novembro de 1973, um mês antes da demissão de Alberto Dines da direção do jornal. Ele representava a verdadeira expressão do repórter, do sujeito que vai às ruas, descobre personagens anônimos, desencava histórias do cotidiano. Segundo o blog do Jorge Antonio Barros, também jotabeniano, certa vez remexeu a lata de lixo após uma reunião para recuperar anotações dos participantes que não queriam dar entrevista. Foi Fleury, como chefe de reportagem num plantão de sábado, que escalou o estagiário de 20 anos para entrevistar um filósofo francês que daria uma palestra no centro de pesquisa do psicanalista Hélio Pelegrino, em Copacabana. Nome do filósofo? Michel Foucault. Nunca lamentei tanto não saber falar francês. Fiz a entrevista em inglês macarrônico. Fleury, Heraldo, Luiz Paulo, Israel, Paulo Cesar, Bartô, Jacinto e meu xará João Batista de Freitas, entre outros, foram mestres de toda uma geração de jovens repórteres. Pelo que faziam profissionalmente e pelo que não aceitavam fazer.