Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O crítico do sensacionalismo midiático

Um dos grandes sucessos da Legião Urbana, a canção “Metrópole” (1986), composta por Renato Russo, apresenta como um dos eixos temáticos principais o tema do sensacionalismo editorial adotado pela mídia na cobertura de acidentes: “É sangue mesmo, não é mertiolate/ E todos querem ver/ E comentar a novidade/ É tão emocionante um acidente de verdade/ Estão todos satisfeitos/ Com o sucesso do desastre:/ Vai passar na televisão”. Antes de considerar o teor da referida canção, cabe salientar que Renato Russo, além de músico-poeta e professor de inglês, foi jornalista, o que lhe rendeu formação acadêmica e experiência profissional para conhecer de perto os bastidores da mídia. Percebe-se, com nitidez, em “Metrópole”, que o sensacionalismo transgride radicalmente os ideais de neutralidade da imprensa, pois vale-se da exploração e manipulação intensa e deliberada das emoções primárias (sensações) do público, em geral induzindo baixo nível de reflexão crítica ou intelectiva a respeito dos fenômenos (“fatos”) reportados.

Considerando os critérios para caracterizar a cobertura jornalística como sendo sensacionalista (forma, definição de pautas, intensidade emocional, exploração artificialmente prolongada e natureza das emoções suscitadas), Renato Russo, em “Metrópole”, destaca especialmente a natureza das emoções suscitadas pelo sensacionalismo. Amiúde, entre outras fortes manipulações emocionais que ocorrem entre a mídia e o público no noticiário sensacionalista, encontra-se a morbidez humana, sendo esta exacerbada pelos meios de comunicação. Convém, nesse sentido, saber por que os jornalistas agem assim, por que o público se submete a (e aprecia) isso e qual é a função social e psicológica desta relação mórbida.

Primeiro é preciso considerar que os jornalistas agem assim porque são profissionais de comunicação e, hoje, trabalhando pautados por índices de audiência e pesquisas quantitativas e qualitativas de circulação de jornais e revistas, adotam ou perpetuam estilos de comunicação que geram mercado para seus veículos. Em outras palavras, o público (ou uma parte significativa dele) deseja continuar consumindo o jornalismo sensacionalista. Esta é a explicação socioeconômica. Logo, a abordagem sensacionalista é defendida por uma orquestração editorial responsável por indicar valores que reduzem o nobre interesse público ao empobrecimento do interesse do público. Renato Russo percebeu com perspicácia que o sensacionalismo, enquanto agente da “banalização do mal”, representava não só o grau mais radical de mercantilização da informação, mas principalmente a válvula de escape de nossa “pulsão de morte”, compreendida como fenômeno obscuro e curioso da psicologia coletiva.

O esvaziamento da crítica

Existe um fecundo diálogo entre a canção “Metrópole”, de Renato Russo, e a crítica ao sensacionalismo realizada por Machado de Assis na Gazeta de Notícias de 16/9/1894. Trata-se de uma crônica que gira em torno de um diálogo entre o narrador e uma fã de tragédias. A ironia machadiana chega a ser corrosiva. Os personagens ficaram frustrados por não ter havido vítimas decorrentes da queda do edifício da fábrica das Chitas. Ao invés de os dois se sentirem aliviados e satisfeitos por aquela excelente notícia, a senhora busca imaginar como seriam a tragédia e os seus possíveis desdobramentos. O interlocutor, perversamente, constrói uma cena imaginada e como seria o impacto desta, frente à opinião pública: “Imagine que morria gente, que havia pernas esmigalhadas, ventres estripados, crânios arrebentados, lágrimas, gritos, viúvas, órfãos, angústias, desesperos. (…) Era triste, mas que comoção pública! Que assunto fértil para três dias!” E justifica a necessidade humana que movimenta a ciranda sensacionalista: “Nós precisamos de comoções públicas, são os banhos elétricos da cidade. Como duram pouco, devem ser fortes.”

Machado de Assis apresenta nessa crônica em particular uma comparação que simboliza bem o fascínio e o desencanto causados pela notícia trágica: mais vale “o espetáculo de uma perna alanhada, quebrada, ensanguentada” do que “o da simples calça que a veste”, conforme confessa sem titubear o narrador para depois dar-nos o motivo: “as calças, esses simples e banais canudos de pano, não dão comoção”. Comoção significa abalo de certa gravidade na ordem pública, sacudidela, choque resultante de descarga elétrica. Estes sentidos fazem da comoção a palavra-chave que movimenta o fazer jornalístico de viés sensacionalista. Assim como Machado de Assis, Renato Russo, reportando-se ao estilo trágico adotado, com veemência, pelos jornais sensacionalistas, considerando também a mercantilização da informação que lhe é inerente enquanto interesse econômico, descreve e avalia, em “Metrópole”, as diversas facetas que compõem a exploração emocional dos fatos por meio de um estilo editorial conhecido popularmente como “espreme que sai sangue”.

O band leader da Legião Urbana também avança no debate crítico sobre o sensacionalismo midiático ao ressaltar que a espetacularização da notícia acaba produzindo fatos híbridos de jornalismo com dramaturgia: “É sangue mesmo, não é mertiolate”. Ou, ainda: “Todos satisfeitos/ com o sucesso do desastre:/ vai passar na televisão”. As notícias apresentadas como show transformam os fatos em diversão. Os shows buscam puramente o esvaziamento da crítica do jornalismo. Com eles, realiza-se o ato de omitir mostrando, de preencher o tempo com o nada, de concretizar o esvaziamento cultural (alienação). Movida pela ideologia do entreter para conquistar maiores níveis de audiência e faturamento, a mídia vem privilegiando a forma do espetáculo. Atento a esse fenômeno, Renato Russo, em “Metrópole”, ressalta a distorção da ética promovida pelo sincretismo da realidade-ficção presente nos discursos televisivos, abolindo, assim, as fronteiras entre o real e o imaginário. A referida música da Legião Urbana coloca Renato Russo na história brasileira dos estudos sobre comunicação, considerando seu importante papel como crítico do sensacionalismo midiático.

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Marcos Fabrício Lopes da Silvaé professor da Faculdade JK, no Distrito Federal, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários