Sempre que morre um repórter das antigas, como foi o caso semana passada de Sérgio Fleury, é menos uma lauda de memória para alguém tirar do rolo da máquina, amassar irritado com a dificuldade de avançar no texto e, depois de fazer uma bolinha, atirar lá na frente da redação, na cabeça de um colega qualquer ao telefone.
Um dia, a estagiária de calcanhar sujo pegou no chão meia dúzia dessas laudas, recém-saídas da Olivetti Lexikon 80 de seu ídolo, Roberto Marinho de Azevedo, o Apicius, dono de um texto deliciosamente salpicado de Eça por todos os lados. Eram esboços torturantes do início de uma crônica gastronômica. Numa das laudas Apicius começava com “Tem-se a impressão…”. Não gostou, amassou e jogou longe. As outras eram variações do tipo “Impressionam-se os que…” ou “Dá-se por impressionado quem…”.
Nas redações de Fleury e Apicius, décadas antes da santíssima tecla “delete”, essas crises literárias ficavam visíveis embaixo do chorrilho de xxxxxxxx pressionado com raiva, uma fúria de preciosismo estético que muitas vezes só servia para aumentar o barulho.
Num outro dia, um repórter levou para a redação o aparelho que um técnico havia lhe emprestado para registrar o ruído nas esquinas mais movimentadas da cidade. Mediu de brincadeira o barulho dali. O resultado não fazia feio diante do registrado em algumas ruas de Copacabana. Gritava-se ao telefone, ao copydesk, ao contrabandista de uísque, à fonte de plantão e ao politicamente incorreto.
“Come-se alguém por seu intermédio?”, era o bordão de uma geração quase toda de homens, acostumada com o chacoalhar das fichas dos Alcoólicos Anônimos no bolso de seus melhores repórteres.
“Jornalismo é uma cachaça”, dizia Oderfla Almeida, o repórter que carregava no nome um Alfredo pelo avesso, diretamente de seus plantões no bar aos fundos da Lidador.
“Parque de diversões”, anunciava o ascensorista na chegada ao andar da redação.
“Enquanto houver champanhe, há esperança”, escreveu Zózimo Barrozo do Amaral na cortiça em frente à sua mesa. Era o mantra inspirador para que todo dia ele desse dezenas de telefonemas, preenchesse uma coluna inteira de notinhas inéditas e no dia seguinte, com outra página em branco, começasse tudo de novo.
Em negrito
Jornalismo é um trabalho de Sísifo, uma montanha que se sobe todo dia, e quando morre um repórter das antigas, como foi o caso agora do Sérgio Fleury, é menos um para ajudar no esforço sobre-humano. É menos um para a escala de fim de semana, ficar na escuta dos rádios da polícia ou dar plantão na porta de algum embaixador sequestrado. Risque-se o nome dele do “seboso”, o pouco higiênico caderno onde a redação divide os telefones e endereços de suas fontes. Antes que alguém grite “velho atrasador de jornal”, urge descer, com as lágrimas devidas, o funéreo de Sérgio Fleury para a oficina.
É menos uma lauda de 72 toques, um título de três de dez, uma pirâmide invertida, uma ronda das delegacias, uma cópia em carbono e alguém que, além de machucar as pretinhas do jeito que elas gostam, estava por perto quando o pauteiro Armando Nogueira chegava, às cinco da manhã, botava o paletó nas costas da cadeira e suspirava resignado as dores de sua labuta: “Não leva a vida na flauta quem vive de fazer a pauta”. Para as estagiárias, ele batia uma pauta falsa: “Ligar para o Zoológico e perguntar sobre os projetos de verão do novo diretor, o Dr. Leão”.
E tudo isso devia vir sem nariz de cera!, calor senegalesco!, decúbito dorsal!, indigitado meliante!, bravo soldado do fogo!, via de regra!, ou tresloucado gesto! E sem ponto de exclamação!
Sérgio Fleury estava presente e viu. O repórter encarregado de cobrir o meio ambiente abre a gaveta para pegar a gravata e lá estão também, colocados de sacanagem pelos colegas, um sapo vivo e um quilo de camarão congelado.
Sem dar bandeira, o repórter ambientalista põe a gravata no pescoço e sai para a coletiva, deixando a gaveta aberta para que o sapo e o mau cheiro se espalhem pelo espanto e as narinas dos autores da brincadeira.
Sabiam todos eles que “macaca” era uma informação em negrito no fim da matéria, e “jacaré”, por estar sempre de boca aberta à espera de uma vítima, era um obituário feito com antecedência. O “dedo duro” jogava o leitor para uma página mais adiante.
Principalmente sabiam que se ganhava pouco, mas era divertido.
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Joaquim Ferreira dos Santos é colunista do Globo