Morto na noite de quinta (12) por causa não divulgada, após desmaiar na Redação do “New York Times”, o colunista de mídia e cultura David Carr, 58, era personagem central destes tempos de transição para o jornalismo digital.
A imagem que o marcou para a própria história do jornalismo foi o embate com editores do site “Vice”, reproduzido no documentário “Page One”, de 2011.
Barbados, “hipsters”, eles se vangloriavam da cobertura rejuvenescida que faziam dos conflitos na África, quando um correspondente desavisado arriscou questionar o “NYT”, comparativamente.
Carr cortou o entrevistado, lembrou que o jornal cobria as misérias da África havia décadas e atacou: “Só porque você põe a porra de um boné de safári e olha para um pouco de cocô não tem o direito de insultar o que fazemos”.
Noutra cena, de um debate sobre jornalismo, ele abria uma cópia em papel de um site, com buracos para mostrar o que restaria de noticiário on-line sem as informações furtadas de seu jornal.
Em entrevista à Folha em 2012 o publisher do “NYT”, Arthur Sulzberger Jr., destacou a cena dizendo que “aquilo não tem preço” e saudando Carr como “estrela de rock”.
Desde 2002, Carr foi crítico e repórter de mídia, mas também embaixador do “NYT”. Com o tempo, moderou sua posição, a ponto de escrever, diante da cobertura de Gaza, que talvez o “Vice” estivesse no caminho certo, afinal.
Foi um dos pontos que levantou, em sabatina na Folha, em agosto. Mas era ainda o embaixador, reagindo com ataques a qualquer questionamento de seu jornal.
Longe de microfones e câmeras, era mais pessimista, preocupado com as demissões que estavam por vir e com a dificuldade em encontrar um novo modelo de negócios, viável, on-line.
Este David Carr do último ano não havia perdido o entusiasmo com o ofício. Em jornais como “NYT” e “Guardian” e agora também nos sites, identificava uma nova “era de ouro” do jornalismo.
Saudava a quantidade e a diversidade da cobertura, sobretudo pelas grandes revelações, de WikiLeaks à NSA (Agência Nacional de Segurança), destrinchadas em conjunto por veículos tradicionais e novos atores só digitais.
Vício
“Page One” transformou o jornalista magro e alquebrado num personagem, algo que vinha se desenhando desde sua autobiografia, “A Noite da Arma” (Record, 2014), lançada em 2008 nos EUA.
Nela, Carr produziu inusitada reportagem sobre si mesmo, com entrevistas buscando confirmar ou negar as memórias que tinha do tempo em que fora viciado em crack.
O jornalista deixa a mulher e três filhas.
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Sem Carr e Jon Stewart, jornalismo perde parte da graça e da autocrítica
Luciana Coelho
A morte prematura do repórter e colunista de mídia David Carr (aos 58) e a aposentadoria também precoce do humorista e âncora Jon Stewart (51) em um intervalo de 48 horas tiram do jornalismo parte importante de sua capacidade de autocrítica.
O golpe moral é pior porque as duas perdas, abruptas, ocorrem na mesma semana em que a rede de TV americana NBC suspendeu o âncora Brian Williams –o William Bonner de lá– por mentir sobre sua participação em reportagens.
Carismáticos e donos de histórias de superação, tanto Carr como Stewart usaram sua alta capacidade de identificação com o público para lhe entregar, na última década, críticas sofisticadas do meio em que trabalhavam, moldadas com observações precisas e a dose certa de ironia.
Parece pouco, mas é artigo em falta em um mercado no qual fórmulas, rumos e foco estão em revisão perpétua.
Stewart, que deve se aposentar no segundo semestre do “Daily Show”, é o maior responsável pelo sucesso de um modelo de entretenimento que, acidentalmente, tornou-se jornalismo relevante.
Seu falso noticiário, sem necessidade de imparcialidade nem de dosar o sarcasmo, se manteve nos últimos 11 anos como a principal fonte de informação política dos americanos de até 30 anos.
Nos 17 anos em que pilotou o programa, fez humor fino e entrevistou com igual perspicácia gente da esquerda e da direita que o respeitava, mesmo discordando de seus pontos de vista progressistas.
Já Carr virou o herói improvável em um ambiente insuspeito ao tornar-se o astro do documentário “Page One”, sobre o “New York Times”, expondo ali sua história pessoal e as falhas de seu meio.
Farão falta ao público e a um gênero pouco dado a noticiar as próprias feridas. (Luciana Coelho é editora-adjunta de “Mercado” da Folha de S.Paulo)
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Nelson de Sá, da Folha de S.Paulo