Morreu Armênio Guedes, bastião último dos velhos comunistas baianos. Reserva moral da esquerda num momento de crise de utopias, levou consigo um século de lutas, de sonhos frustrados, mas também de grandes conquistas. Considerava-se um comunista avulso, pois nunca domesticou seu espírito livre e jamais se dobrou aos desmandos do partido. Não se submetia à tirania do comitê central, não aceitava posições autoritárias, o que lhe custou muitas vezes o ostracismo.
Foi um dos primeiros comunistas brasileiros a defender a centralidade do conceito de liberdade nas lutas da esquerda. Por seu comportamento “rebelde”, foi boicotado pelos principais dirigentes do Partidão, ao qual pertenceu por quase cinco décadas.
Natural de Mucugê, pequeno município da Bahia, nasceu um ano depois da Revolução Russa. Lembrava-se pouco dos primeiros anos, embora gostasse de visitar aquele povoado de 15 mil habitantes perdido no tempo, um dos mais antigos da Chapada Diamantina. Da cidade de sua infância carregava a memória do dia em que os moradores se mobilizaram, apavorados, para resistir à chegada da Coluna Prestes. Foi a primeira vez que ouviu falar do mítico cavaleiro da esperança com quem seu caminho cruzaria muitas vezes ao longo de sua vida. Sobre Mucugê, lembro-me de Armênio citar o pintor Marc Chagall ao falar de sua aldeia: “Só é minha a terra que está em minha alma”.
Ainda menino mudou-se com a família para Salvador. Armênio teve sete irmãs e três irmãos, criados com igualdade num ambiente ilustrado, onde se valorizava a formação e o conhecimento. Na última vez que vi Armênio, poucos dias antes de morrer, disse sobre seus irmãos: “Todos comunistas, com diferentes gradações”.
Foi em 1935 em Salvador, quando cursava a faculdade de direito, que Armênio ingressou no Partido Comunista Brasileiro, embora antes disso já atuasse politicamente. Nessa época, tornou-se mais próximo de diversos militantes baianos que tiveram participação central nos destinos das lutas da esquerda do país: Carlos Marighella, Jorge Amado, Jacob Gorender, Mário Alves, Edison Carneiro, entre outros.
Nos anos 40, mudou-se para São Paulo e começou a desenvolver uma atividade que marcou o pensamento brasileiro do século XX. Armênio foi um dos principais articuladores da imprensa comunista no Brasil, criando diversas publicações, muitas vezes batendo de frente com a linha oficial do partido, fazendo que ideias circulassem e novos pensadores surgissem. Nessas revistas despontaram nomes como Leandro Konder e pensadores como o italiano Antonio Gramsci começaram a ser discutidos. Essas publicações inspiraram muitas outras similares e foram centrais para dar novos ares ao pensamento de nossa esquerda.
Espírito inquieto
Armênio era considerado por Luís Carlos Prestes um homem de confiança, embora rebelde. A amizade entre os dois iniciou-se em 1945, quando Armênio foi designado para fazer sua segurança pessoal. Embora mal soubesse atirar, andava com uma pistola a tiracolo, acompanhando o grande líder do Partido Comunista. Estava com Prestes quando este soube do assassinato de sua companheira Olga Benario pelos nazistas após ser extraditada por Getúlio Vargas. A notícia foi dada em uma estação de trem em São Paulo, quando Prestes e Armênio se preparavam para embarcar para o Rio.
Segundo a versão de Fernando Morais, biógrafo de Olga, Prestes recebeu a notícia com frieza. Armênio narrou-me de outro modo essa história: “Após receber a notícia, entramos em um vagão-leito, que tinha uma espécie de beliche. Eu deitei na parte de cima e Prestes ficou na parte de baixo sentado na cama. Percebi que ele chorava discretamente. E ele permaneceu assim, sentado, fungando, ao longo de toda a viagem.”
Nos anos 50, Armênio foi estudar na União Soviética. Na época, sofria de uma grave enfermidade e acabou sendo internado. Foi no hospital, em meio a lençóis brancos e lamentos em russo, que soube da morte de Stálin. Acompanhou a comoção com distanciamento. Todos choravam de um modo desesperado e aquilo o marcou profundamente. Sentia já naquela época um profundo incômodo com o culto à personalidade que rondava o líder vermelho.
Depois da sua recuperação, fez parte da turma de dirigentes brasileiros que passaram pelo processo de formação na URSS, onde foi muitas vezes censurado por sua posição crítica diante das imposições e autoritarismo a que os estudantes eram submetidos. Ali se aproximou daquela com quem se casou primeiro: Zuleika Alambert, militante e escritora com quem viveu por 27 anos. Data desse período também uma história curiosa. Armênio foi afastado do comitê central do Partidão por causa da sua enfermidade. Seus detratores lhe davam poucos anos de vida. Armênio contou-me com ironia: foi “o único que sobreviveu para contar essa história”.
Depois do golpe de 64, a vida de Armênio, que já era dura, se complicou. Após um tempo clandestino, sabendo-se monitorado pela ditadura, ele partiu para o exílio. Viveu no Chile, onde se tornou referência para uma grande leva de militantes de esquerda também desterrados. Era chamado pelo codinome Júlio, ou melhor, Tio Júlio, por já ser mais velho que a maioria dos militantes à sua volta.
Tornou-se uma referência por suas ideias de liberdade e por sua defesa de uma união das esquerdas para a resistência. Seu estilo afável e agregador, unido à personalidade tímida e pouco afeita a holofotes, cativou os jovens de esquerda. Depois do golpe no Chile, Armênio passou a viver na França. Foi em Paris que conheceu a grande companheira de sua vida: Cecília Comegno, com quem viveu até o seu último dia.
Apesar de trabalhar desde os 16 anos, foi ter sua primeira carteira profissional assinada aos 64, após abandonar o partido, quando foi para a redação da “Gazeta Mercantil”, em São Paulo. Por causa da militância, Armênio passou anos sofrendo perseguições e represálias, sobrevivendo muitas vezes com identidade falsa. Foi clandestino durante grande parte de sua vida.
Certa vez, perguntei a Armênio o que achava da vida. Ele respondeu com ênfase: “Uma merda!” Depois, com seu estilo cativante, riu e disse que a vida era muito dura, mas ainda assim gostava dela. E narrou os longos períodos nos quais sobreviveu em condições precárias com o salário reduzido pago pelo partido. Narrou as perseguições políticas e finalmente se lembrou da morte do irmão, assassinado pela ditadura. Poucos fatos marcaram tão negativamente a vida de Armênio como a morte de Célio Guedes.
Militante orgânico do partido, Célio foi designado para uma ação perigosa e desnecessária e acabou assassinado pela repressão. Armênio nunca perdoou a direção do PCB por ter enviado o irmão para a morte. Esse foi o golpe final para ele, que já via o PCB com olhos críticos, afastar-se.
Seu desligamento definitivo ocorreu em 1983, depois de uma briga com Giocondo Dias, que resolvera censurar-lhe por apoiar Davi Capistrano Filho em um processo de expulsão. Após 47 anos de militância, Armênio se desligava do PCB. Aos 64 anos, deixou de ser um homem do partido e recomeçou a vida do zero. O grande nome da imprensa comunista passou então a trabalhar na “Gazeta Mercantil” e depois (até poucos anos atrás) na Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Afastou-se da militância, mas manteve o espírito inquieto e provocativo. Até seus últimos dias cultivou amizades com a intensidade que cultivou ideias.
Liberdade e utopia
Certa vez lhe perguntei se as lutas valeram a pena. Armênio respondeu que sim. Tinha clareza de que os homens e mulheres de esquerda que viveram no século XX humanizaram o capitalismo. Dava um exemplo do Brasil dos anos 20: na Bahia, ele via enfermos pobres amontoarem-se nas portas da igreja aos domingos para pedir conselhos aos médicos que saíam da missa porque não existia sequer serviço público de saúde. Valeu a pena lutar. Como dizer que a vida não melhorou aos olhos de quem viveu um século?
Armênio deixa saudades para todos os que o conheceram. Viverá não só na memória dos amigos, mas daqueles que seguem lutando para transformar o mundo e fazem do desejo de mudança sua razão de viver. Para os amigos fica a lembrança do seu olhar sereno, sua fala mansa e sedutora de bom baiano. Sua inteligência e sua deliciosa ironia. Sua alegria de estar vivo e sua forma única de celebrar a amizade. Armênio deixa silenciosamente seu legado: não se faz luta sem ética. Não se faz revolução sem liberdade. Foi-se embora Armênio, codinome Júlio. Comunista avulso, avesso à voz única.
Quantas vidas cabem em 96 primaveras? Nos seus olhos azuis e no peito vermelho tinham morada a amizade, a liberdade e a utopia. Armênio não foi Prestes, cavaleiro da esperança. Foi Quixote, cavaleiro andante.
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Thiago Brandimarte Mendonça é cineasta e está produzindo um documentário sobre a vida de Armênio Guedes