Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A animadora da mística feminina

Ela provocou protestos e críticas, foi motivo de ironia e piada por parte dos homens. Quando visitou o Brasil, na década de 1960, ficou famosa a frase do jornalista que, ao cruzar com ela nos corredores da Editora Abril, disse, ao saber de quem se tratava: ‘De minha parte, está liberada’.

Betty Friedan, a autora de Mística feminina, publicado em 1963, teve a coragem de dizer em público e por escrito que as mulheres não se sentiam completas só por casar e ter filhos. Demitida do emprego de jornalista em 1958, quando teve o segundo filho, resolveu escrever e revelar toda a frustração das mulheres de sua geração e formação – universitárias, cheias de energia e criativas – obrigadas, por convenções sociais, a escolher entre os filhos e a carreira. Mulheres que ‘sofriam do mal sem nome’, com o qual conviviam à custa de antidepressivos e a da felicidade pessoal.

Para a sociedade norte-americana, Betty Friedan soou como uma herege ao discordar do padrão estabelecido de felicidade familiar: o marido fazendo carreira e a mulher em casa, preparando os filhos para um futuro igualmente risonho cujo cenário já estava pronto – os homens seriam executivos e as mulheres, donas-de-casa.

Ainda existe?

E a menina que foi discriminada na adolescência (era judia e feia) na pequena cidade de Peoria (Illinois) passou a sofrer a discriminação pública por ousar mostrar que as mulheres queriam mais. Sua guerra contra a discriminação das mulheres no trabalho foi vista como ameaça pelos homens e a resposta não demorou: a mulher que lutava pelos direitos iguais e que considerava os homens como aliados em sua luta virou a grande mal-amada, que só reclamava porque era feia e que – embora casada e mãe de dois filhos – não passava de defensora das lésbicas.

Se nos Estados Unidos – onde a mulher já estava inserida no mercado de trabalho – Betty foi mal-interpretada, imagine em países machistas e subdesenvolvidos como o Brasil da década de 1960. Talvez até pelo modo de ser dos brasileiros, não se discutia, por aqui, a essência da luta da feminista.

Os homens e a mídia, onde na época as mulheres ainda eram artigo raro, preferiram optar pelo humor como forma de desmoralizar as pretensões feministas. E a discussão – que deveria ser sobre os direitos no trabalho e a insatisfação pessoal com uma vida limitada à casa e cozinha – entrou para a história como a defesa do orgasmo e da liberdade sexual. Em resumo: feministas eram as feias, mal-amadas e desprezadas pelos homens.

O noticiário sobre a morte de Betty Friedan (no sábado, 4 de fevereiro, aos 85 anos) foi da biografia de 8.500 toques do New York Times ao simples registro ou registro nenhum nos jornais brasileiros. Uma prova de que a revolução que ela pregou deu resultado? E, portanto, basta dizer que morreu a escritora feminista? Ou uma demonstração de que a mística feminina ainda existe?

Sucesso incompleto

Na semana em que a morte de Betty Friedan mereceu pouco mais que um registro, a imprensa brasileira se ocupou de dois crimes cometidos contra crianças por suas mães: um espancamento e a tentativa de assassinato da criança jogada na água do lago da Pampulha, em Belo Horizonte. Crimes com todos os componentes necessários para fazer manchetes sensacionalistas e mexer fundo com a emoção dos leitores. Especialmente porque os autores foram mulheres. Mais do que isso, as mães.

Pobres, sem condições de criar os filhos, mas sem coragem de matar (como explica o pesquisador de comportamento animal Aldo Lucion, no Estado de S.Paulo de sábado, 4/2), essas mulheres se transformam em verdadeiros monstros. Enquanto o pesquisador tenta mostrar que nem todas as mães são iguais, e que rejeitar os filhos não é coisa apenas de mulher pobre (‘mulheres com dinheiro abandonam as crianças na frente da TV’), a imprensa perde a oportunidade de discutir dois pontos que renderiam um bom serviço às leitoras.

O primeiro é a falta de uma política governamental que poderia evitar tragédias de mães que batem nos filhos ou tentam matá-los. O segundo é a ‘mística feminina’, essa que diz que ser mãe é o caminho para a realização e a felicidade da mulher.

Parece que, embora vá passar para a história como a mulher que derrubou um mito, Betty Friedan não conseguiu sucesso total em sua luta: a de mostrar que as mulheres querem um lugar no mundo, além dos limites da casa. Não conseguiu, sequer, dar boas idéias de pautas aos antigos colegas de profissão.

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Jornalista